Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

terça-feira, 31 de maio de 2011

A culpa é do pipoqueiro



O amigo leitor pode até não saber, assim como minha família pode achar que nunca escrevi nada sobre ela, mas acontece que ela está tão em mim que todas as minhas palavras se confundem com as coisas que ouvi desde pequeno e venho acumulando desde então. É aquela típica família suburbana, com quintal, muitas comidas gordurosas e carregadas, cerveja suficiente para matar a sede de vinte e oito camelos e, obviamente, muito barulho harmonizado com gritos para as crianças que também gritam, fala alta direcionada a quem está logo ali do lado e muitas muitas muitas gargalhadas de fazer chorar, perder o fôlego e conter a barriga com a mão.

Numa dessas conversas de quintal – certamente a continuação de alguma festa que começou no dia anterior e teimou em não acabar, é o que chamamos de enterro dos ossos! –, uma de minhas primas, aliás, essa também é uma característica elementar das família suburbanas, elas são enormes... mas então, em conversa que não se sabe por que entrou ou gerou o tópico da dificuldade de criar as novas gerações, uma de minhas primas personificou todas as suas queixas e lamentações em um personagem: o pipoqueiro. Segundo ela, aquele maldito homem tinha de ficar justo ali na porta da escola? Poxa, a criança vê o sujeito e, claro, enche o saco pra comprar a tal da pipoca! Isso é todo dia! Não tinha outro lugar pra esse mala ficar? Resposta dos ouvintes: gargalhada geral!

Ao ouvir o som da claque, meu primo, que estava dominicalmente deitado no sofá da sala e pestanejava diante da tevê, levantou-se e foi correndo fazer as devidas atualizações. E já devidamente atualizado – essas coisas correm ainda mais rápido do que notícia ruim –, ele decretou gaiatamente o seguinte veredito: Pode deixar! Na qualidade de padrinho, eu assumo a responsabilidade de resolver isso. Amanhã mesmo eu vou lá e quebro os dois braços do sujeito. Assim, ele não tem mais como girar a manivela da pipoqueira! Dito isso, o imponente orador encerrou seu pragmático discurso com uma sonora gargalhada, dando a deixa para a entrada do coro, que já rolava de tanto rir.

É desse jeito. Quando nos reunimos em um bom quintal, seja pequeno ou grande, ele corre o risco de se transformar em duas coisas: levantando os muros, vira hospício; erguendo uma lona, vira circo. Mas uma coisa é certa: se para os antropólogos, essa família não seria nada mais do que um microcosmos do nosso país, igual a outras tantas famílias brasileiras, isso é problemas deles. A minha é diferente e especial. Óbvio. Ela é a minha. Tão minha quanto aquela aldeia é do Fernando Pessoa e por isso tem o rio mais bonito. Com seus erros e acertos, suas qualidades e defeitos, a família é o que eu possuo de mais valioso, porque me ensinou todos os valores em que acredito e pelos quais luto diariamente... Ah! Por falar nisso, o pipoqueiro passa bem, tá? E eu espero que todos nós assumamos as nossas próprias responsabilidades ao invés de jogá-las nas costas dos outros, ok?


Márcio Hilário.

31-05-2011



quinta-feira, 19 de maio de 2011

Um sujeito artesanal


Sem dúvida, a imagem-símbolo do mundo industrial é aquela de Charles Chaplin, no filme Tempos Modernos. A figura do apertador de parafusos, fixamente concentrado em sua função na linha de montagem e alienado do processo conjuntural, opõe-se radicalmente à imagem do artesão, que, além de participar de todas as etapas do processo de elaboração do objeto artístico, consegue projetar já na matéria-prima o produto final de seu intento.


Certa vez, assisti ao ator Pedro Cardoso distinguir a televisão do teatro, respectivamente, pela oposição metafórica industrial vs artesanal. Para ele, a televisão aceita bem a reprodução de si mesma, corrige as imperfeições com recursos tecnológicos e faz uma comunicação fria, distanciada e monológica, já que o espectador está em casa e, por isso mesmo, não pode responder. O teatro, por sua vez, aceita menos o modo industrial de produção de bens culturais: o ator precisa estar realmente ali, fazendo o espetáculo para um público que reage e interage. Além disso, uma reapresentação não é o mesmo que um vídeo tape, já que o ator tem de fazer tudo de novo, para uma nova platéia, que pode responder de outra forma. Sendo assim, cada espetáculo é um todo novo.


O publicitário Duda Mendonça já escreveu um livro no qual afirmava que não entendia porque certos políticos perdiam tempo fazendo comícios, visto que com um bom programa no horário eleitoral eles atingiriam muito mais gente de uma maneira bem mais eficiente, intimista, entrando na casa das pessoas. A eficácia desse modo industrial de fazer política na sociedade do espetáculo fica ainda mais evidente quando constatamos o grande número de atores, apresentadores, radialistas e músicos que têm sido os campeões nas urnas. A participação em movimentos sociais, o diálogo permanente com as bases e a formação de uma militância foram substituídos pelo luz, câmera, ação.


É por essa e por outras que, diante de uma lógica industrial, que dissemina a fragmentação, a superespecialização e a conseqüente alienação do todo como um princípio que se estende a todas as áreas do conhecimento humano, cheguei à seguinte conclusão: sou um sujeito artesanal.

Márcio Hilário

19/05/11