Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

domingo, 31 de julho de 2011

É o tempo de pipas no alto



Não difícil perceber que o Rio de Janeiro está no auge das férias escolares. Na Zona Sul ou na Zona Oeste, as praias ficam lotadas de jovens e adolescentes sejam os dias úteis ou inúteis. Já na Zona Norte, as praças e os shoppings que acabam repletos de pequenos grupos juvenis andando pra lá e pra cá sem destino certo. Agora, nos subúrbios da cidade ou na minha velha e querida Baixada, o buraco é bem mais embaixo... ou melhor, em cima. É o tempo ideal para os adolescentes e suas incríveis engenhocas voadoras. É o tempo de pipas no alto.

Uma pipa é o mesmo que um papagaio, apesar de certos papagaios possuírem penas e mal hábito de contar piadas chulas. A estrutura da pipa é composta por duas varetas de bambu cruzadas a uma outra maior e principal, presas com linhas que também fazem a borda para que tudo seja encapado com papel fino colorido. Uma calda, ou rabiola – que é uma espécie de varal de pequenas tiras de papel amarradas lado a lado –, é presa à base da pipa, a fim de proporcionar peso e garantir estabilidade no vôo.

Aos olhos infantis, encanta o céu multicolorido entrecortado pelo vôo daqueles pequenos cometas de madeira e papel. Nesse quadro celeste, toda criança – mesmo que adulta – pode escrever livremente suas poesias aladas, deixando voar todo o lirismo que transborda do seu coração. Como pilotos de aviões de caça, disputam o céu em aventuras e batalhas que não produzem dor nem morte. Tudo é só beleza e fantasia.

Aos olhos adultos, é tempo de crianças desafiando o trânsito com uma imprudência suicida, pulando muros e invadindo casas em gritos frenéticos a incomodar o dia todo. Armadas com linhas cortantes, cheias de vidro moído e cola, são como assassinos em potencial armados e em busca de vítimas, motocicletas e antenas de televisão.

Cai a noite. Os adultos podem mergulhar tranquilamente na escuridão silenciosa de um mundo sem crianças barulhentas. As crianças podem deitar e dormir sonhando com uma manhã bem ensolarada e com muitas pipas no alto. E no confronto dessas duas visões de mundo seguem as férias suburbanas, que ainda teimam em resistir ao isolamento da modernidade, apesar da presença do vídeo-game.

Márcio Hilário

29/07/2011



quarta-feira, 6 de julho de 2011

O silêncio da namoradeira



“Em cada porta um bem freqüente olheiro,

Que a vida do vizinho e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,

Para o levar à praça e ao terreiro.”

(Gregório de Matos)



Uma das coisas mais maneiras que tenho visto recentemente no subúrbio é que as pessoas importaram a moda veranista colocando aquelas bonecas namoradeiras nas janelas para tomar conta da vida dos outros. Quem é suburbano da gema sabe que essa é uma versão inanimada da tradicional fofoqueira do bairro, que é uma das personagens mais folclóricas do nosso cotidiano. Sabem aquelas com telhado de vidro bem fininho, que rotulam os filhos dos outros como vagabundas e maconheiros, mas não olham para suas próprias crias? Pois é. Lembro-me, por exemplo, de uma da minha rua que ficava tanto tempo na janela do prédio que me via ir e voltar da escola, do maternal ao ensino médio. Ela sabia até quando era dia prova e só faltava comparecer à reunião de pais para pegar o boletim. Aqueles cotovelos eram casados com comunhão de bens com o parapeito da janela. Depois que ela morreu, as janelas foram trocadas. Dizem as outras más línguas que seguiu tudo junto com a dona no caixão.



Mas voltemos ao caso das namoradeiras. Afinal, qual é a grande diferença que entre elas e o seu protótipo humano? O silêncio. Enquanto as fofoqueiras seguem aquele ritual acadêmico de ensino, pesquisa e extensão tão bem descrito pelo nosso barroco Gregório de Matos, as namoradeiras só observam e nunca falam nada. As fofoqueiras são mais completas. E, como têm pernas, elas possuem um alcance muito superior ao limitado campo de visão da janela. Elas literalmente vão atrás das notícias. Algumas têm até um quê de legista e fazem questão de serem as primeiras a chegarem ao local do crime quando pinta um presunto fresco. Mas não param por aí: além de fazerem o laudo, promovem a investigação, encaminham a denúncia, conduzem o julgamento, proclamam o veredicto e estabelecem a sentença. É x-tudo completaço, com batata palha e ovo de codorna. E as namoradeiras? Nem tiram a mão no queixo para não apontarem o dedo. Além de continuarem inexoravelmente mudas. E foi esse silêncio que confundiu a cabeça da minha família.



Meu tio resolveu ir ao quintal para dar uma aliviadazinha na bexiga. Não. Não é que não tenha banheiro em casa. É que urinar a luz do luar é escatologicamente poético. Só que foi nessa de olhar para a paisagem que acabou levando um baita susto e quase molhou as calças. Havia uma mulher na janela do vizinho contemplando o horizonte e deu um baita flagra no maroto. Fosse um daqueles caras que passam buzinando na beira da estrada e ainda gritam mijãããooo, ele ainda viraria balangando o mijador, mas para a esposa do vizinho jamais faria isso. Pior é se batesse aquela sanha de tarado exibicionista: acabaria acreditando que aquela falsa pudica tinha era um fetiche voyerista e escondia dentro de si uma verdadeira devassa. Ocorre que a realidade dos fatos não me deixa mentir e a taradinha da janela era apenas uma indiscreta e inerte namoradeira, sem voz e sem vez.



Tudo isso foi contado numa daquelas rodas familiares que nunca acabam em uma só história. Minha tia – irmã do mijão naturista – tomou a palavra e contou seu causo. Ia ela a caminho de visitar uma outra tia minha, que havia se mudado, e nada de encontrar o endereço. Família grande e nômade tem dessas coisas. Pegou o celular e ligou para a minha mãe para confirmar a rota. Sobe rua, desce rua e nada. No subúrbio a numeração, quando existe, não tem coerência alguma. Já quase desistindo, avistou uma vizinha na janela e decidiu educadamente pedir-lhe ajuda. Ô senhora, sabe onde mora fulana? Ô senhora? Ei? (Paciência tem limite... e cordialidade também!). Ô, carvalho (licença poética!), não tá me vendo aqui não, poxa (outra licença!)? Então vai... (habeas corpus poético!)



Resumo da narração: namoradeiras podem até não falar, mas têm de ver e ouvir cada coisa!




Márcio Hilário


06/07/2011