Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O verdadeiro sabor da vida

(Poema "Nasce morre", Haroldo de Campos, 1958)



E se alguém perguntasse quantas vezes podemos nascer para a vida? Uma vez só, ué! Responderíamos expulsando as palavras da ponta da língua. Mas será mesmo que realmente ascemos uma vezinha e pronto? Não tenho tanta certeza disso. Pode ser que possamos vir à luz todos os dias, quem sabe. Calma mãe! É apenas no sentido figurado, ninguém vai obrigá-la a fazer sete partos por semana! O fato é que, a todo instante, podemos experimentar da vida coisas que para nós eram impensadas há minutos atrás.

Na pele de Álvaro de Campos, vivendo uma noite terrível, Fernando Pessoa se queixava de como a vida é sempre uma batalha perdida por um placar bem expressivo: o infinito a zero. Afinal, todas as vezes que escolhemos fazer algo em especial, automaticamente também deixamos de fazer toda uma infinidade de outras coisas possíveis. E o que é pior: as experiências vividas ficam eternizadas na memória, mas e aquelas que não aconteceram? Essas ficam perdidas para sempre. Puxa!

Olha! Longe de mim querer dizer que o poeta está errado, mas pensemos por outro lado. Do mesmo modo que nunca poderemos ter de volta todas as coisas que deixamos de fazer, como não sabíamos mesmo o que era e como ainda não morremos, a vida nos oferece a oportunidade de vivê-las sem ter essa certeza. Assim, tudo o que está por vir é inevitavelmente uma grande surpresa. E é isso o que pode fazer da vida um mistério e viver passa a ser assim uma arte bem legal.

Vejam o caso de um grande amigo meu, por exemplo. Viu toda a sua família ser assassinada juntamente com os mais tenros dias da sua infância vivida no gueto e no campo de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. Depois disso, não ficou imune a outras tantas amarguras da vida: perdeu mais entes queridos e lutou contra a sua frágil saúde. Apesar de tudo, aos 84 anos de idade, foi capaz de se emocionar ao comer algodão doce pela primeira vez na vida: a infância perdida renasceu naquele dia, pequeno Henryk!

Márcio Hilário.

30-09-2011

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Guerra de canudos, copos e pratos vazios



Quando eu era pequeno, acreditava seriamente que a expressão “Guerra de Canudos” fazia referência a algum episódio ocorrido numa lanchonete estilo fast food. Algo que envolvesse uma disputa entre clientes que, estressados pelo péssimo atendimento da casa, resolveram promover um quebra-quebra geral. Coisa que nos jornais sensacionalistas de hoje pudesse vir noticiada na primeira página mais ou menos assim: “Guerra de Canudos: clientes boladões quebram a dieta e o podrão”. Que idéia! Eu devia estar mesmo à frente do meu tempo.


Mas antes fosse o bafão na lanchonete, porque no sertão a chapa ficou muito mais quente. Foi o que eu li nos livros da história oficial. Diz que um bando de fanáticos religiosos sertanejos, liderados por um doido varrido com cara de beato e armados com facões e enxadas, planejava invadir a propriedade privada, tomar o poder, derrubar o governo republicano e impedir o avanço do país – mais ou menos o que a imprensa de hoje diz a respeito dos baderneiros do MST! Ainda bem que o exército chegou lá em Canudos e matou todo mundo, tipo Carajás.



Assim ficou tudo explicado? Quem me dera! Quando fui estudar literatura, conheci um tal de Euclides, que esteve lá no meio do furdunço e desmentiu em livro tudo o que foi contado pela oficial versão dos oficiais. Caguetou geral. Para ele, o episódio de Canudos não era um caso isolado na nossa história, mas um sintoma endêmico de uma sociedade forjada a partir da ótica opressora do homem civilizado civilizando o não-civilizado. Os sertanejos, na perspectiva euclidiana, eram, antes de tudo, bravos, e seu único fanatismo era sobreviver ao abandono do estado e aos disparos dos canhões da civilização.


Aí, deu ruim! Depois dessa também, fiquei boladão e passei a desconfiar de tudo. É por isso que fico sempre muito preocupado ao ver hoje os membros da nossa sociedade urbana e civilizada aplaudirem entusiasticamente os exercícios bélicos do governo tentando levar cidadania aos excluídos. Pior do que uma briga de lanchonete, essa justa batalha civilizatória coloca na mira de blindados e carros de combate homens, mulheres, velhos e crianças armados de copos e pratos vazios.


Márcio Hilário

15-09-2011