Sentado na calçada
de pedras portuguesas, recostado à parede entre a lanchonete e o pequeno salão
de belezas, aquela criatura negra e suja, incômoda aos olhos de quem passava,
insistia em sobreviver no inóspito ambiente da cidade grande. Seu cheiro era insuportável
e pior ainda era seu olhar de fome, que tirava o apetite de quem apoiava os
cotovelos no balcão para abocanhar um enorme e merecido joelho de presunto e
queijo. O jeito era elevar os olhos para a tevê pendurada entre as frutas que
dali a pouco virariam saladas ou sucos.
Eis, então, que o
noticiário trouxe a triste notícia de que pessoas terríveis, sem alma e sem
coração, haviam abandonado um pobre cachorrinho preto à beira da estrada. Tentando
disfarçar, aquele desumano casal parou o carro à margem da pista, abriu a porta
traseira, puxou o serzinho adorável para fora do carro e amarrou-o na grade de
uma casa, talvez, não dava para ter certeza. E como se quisessem atenuar sua
pena em algum futuro tribunal, ainda deixaram uma vasilha com água, a fim de
que o enjeitado bichinho não morresse de sede até que algum bom samaritano lhe
desse casa e comida.
Foi o que
aconteceu para a felicidade de quem mordiscava o sanduíche de salada de atum no
pão integral: pessoas de verdade apareceram e salvaram o desabrigado cãozinho
do perigo das ruas. Ainda há alguma esperança para a humanidade, porque,
enquanto uns ainda insistem em praticar o mal, outros valentes persistem em
manter acesa a chama da bondade em nossos corações. E limpando a boca após o
último gole de suco de abacaxi com hortelã, saiu feliz da lanchonete, como se
flutuasse em sonhos.
Tivesse descido um
pouco das nuvens, teria reparado o segurança do comércio local, igualmente
negro mas limpinho, retirando o rapaz que incomodava aos que ali queriam
passar. Como os antigos feitores e capitães do mato, aquele trabalhador deveria
fazer o serviço sujo de higienizar as calçadas da gente de bem. E ao contrário
do pobre cão pretinho, aquele incômodo negro não ganharia uma família ou um
lar, mas peregrinaria pelas ruas tentando, indignado e humilhado, compreender a
covardia das leis que regem as coloniais pedras portuguesas: se aqui eu não
posso sentar, será que me deixam roubar?
Márcio Hilário
06-01-2015