Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Em terra de cegos, quem não é cego cega


“70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram; sem saber por que nem o que. Votam como vão à festa da Penha, - por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.”

(Machado de Assis)



Na crônica de 15 de agosto de 1876 (isso mesmo, lá no século XIX!!!), o já grande Machadinho, olhando para os números do recenseamento do império, ficava atônito com o obsceno índice de analfabetismo: apenas 30 % da população brasileira tinha acesso às informações escritas. A respeito do que não se sabe, não se reflete. Sem reflexão, não tem discussão, questionamento, proposição. Com isso, nada de transformação.

Para nosso escritor oitocentista, não saber ler é estar impedido de ser cidadão, já que a exigência básica do exercício da cidadania – que implica direitos e deveres – é a participação. Dentro dessa lógica e na mesma crônica, ele afirma que um governante brasileiro do seu tempo, ao proclamar-se um representante do povo, deveria na verdade dizer em alto e bom som: venho aqui em nome dos 30% a quem, de fato, represento!

Segundo as atuais taxas de alfabetização, o Brasil inverteu aqueles números sinistros e já pode se gabar dos seus mais de 90% de alfabetizados. Apesar disso, o sono eterno do Bruxo do Cosme Velho está longe de estar tranqüilo. Mudaram os números, mas surgiram com eles novos tipos de analfabetos. Aliás, sobre esse tema, o senso comum adora hastear a sua bandeira mais preconceituosa: analfabeto é sempre o pobre que vive nas periferias e que tem baixa escolaridade.

O lema desse estandarte é bem simples: saber ler é pouco; não basta reconhecer as letras e lidar com composições textuais básicas, é preciso ter a capacidade de compreender e interpretar das unidades médias às mais complexas, como textos científicos e acadêmicos. Enfim, o vilão da democracia participativa agora é o analfabeto funcional.

Penso que, em termos de cidadania, esse raciocínio seja, além de preconceituoso, equivocado, discriminatório e segregador. Ele culpabiliza o pobre e isenta as elites de praticarem uma outra e pior modalidade: como diria Brecht, o analfabetismo político.

Se hoje no Brasil todos podem votar, inclusive os completamente analfabetos, o que justifica um número de abstenção de eleitores superior a 20% nas últimas eleições presidenciais? Em números absolutos, isso chega perto de 30 milhões de pessoas, o que equivale a três vezes a população de Portugal, ou ainda, quase a totalidade das populações de Uruguai, Paraguai, Bolívia e Equador juntas.

Não bastasse o alheamento expresso por essas ausências, o contexto fica ainda pior quando nos damos conta de que nem todos os votantes exerceram no voto uma participação consciente. Ou seja, esses eleitores foram às urnas e cumpriram seu dever cívico, mas, na verdade, não estavam nem aí para o contexto político. E esse contingente é incalculável, pois não tem registro nem figura nas estatísticas, visto que está oculto e protegido pelo véu inefável da auto-alienação. É, portanto, a mais plena das abstenções e, por conseguinte, o mais profundo analfabetismo político, porque não se manifesta através de uma negação de direitos ou por meio de uma simples ausência, mas se revela pelo mais completo abandono do processo político como um todo. Nele o eleitor escolhe um candidato com a mesma indiferença criteriosa de quem pega um salgadinho numa bandeja sortida de festa só para não fazer desfeita: morde um pedacinho, enrola o resto no guardanapo, põe no cantinho da mesa e esquece!

E por falar em festa: enquanto o domingão legal e os bares dos novos pólos gastronômicos da cidade ficam cada vez mais lotados de pessoas engajadas na futilidade dos programas televisivos, os grandes momentos históricos continuam vagando anonimamente pelas ruas da indiferença.

Márcio Hilário.

03-11-2010


PS: Alguém já se deu conta de que, no último domingo (31-10-2010), foi eleita a primeira mulher para a Presidência da República Federativa do Brasil?

4 comentários:

  1. É, parceiro, colega de profissão e amigo, às vezes - confesso que esse às vezes foi força de expressão, pois penso nisso na maioria delas - me decepciono com a política e com quem pode fazer alguma coisa por nosso povo!
    Amplexos

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  2. Márcio, parabéns pelo blog! A questão do analfabetismo é dolorosamente viva e cruel. Não basta ler enunciados em um papel para fugir à condição de analfabeto. Há uma praga pior, a incapacidade de ler o outro, a perda da visibilidade da própria condição humana. Ou seja, o analfabetismo social é hoje matriz de preconceitos e exclusão,
    Quanto às eleições confesso meu ceticismo. Não apontam para aquilo que os sustentadores do sistema político dominante defendem, a afirmação da cidadania.Antes são a sua negação. Chegou-se ao cúmulo de corresponderem à própria anulação da política. Cada vez mais representam um ritual estabelecido pelo poder para se replicar ad infinitum.
    Afinal, a alfabetização, o despertar da consciência popular e à leitura do mundo apontam para uma ruptura radical com esse paraíso de banqueiros e de especuladores chamado Brasil.
    Meu caro machadiano, às vezes fico pensando em como Machado deveria ser por dentro, como não deveria ficar desesperado com a nossa realidade, ele que conheceu na própria carne os dois lados do Brasil, alguém que veio do povo mas que conviveu com uma classe reacionária, escravocrata, predadora. Mesmo sem ser politicamente revolucionário, a convivência com a elite do Segundo Reinado deve ter contribuído para o aprofundamento do ceticismo que lhe é atribuído.
    Epa, desculpe, passei do ponto. Eu ia só lhe desejar boa sorte com o seu blog e acabei delirando.
    Quando puder, dê uma olhada nos meus blogs.
    Um abraço,
    José Antônio

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  3. Amigo Hilário,
    antes de mais nada, quero te agradecer pelos elogios e sua participação lá no blog(ue). Pra mim, repito quantas vezes forem necessárias, é uma honra ter um ídolo como amigo e leitor.
    Pra variar, concordo com o que você escreveu..Existe um hábito histórico nas elites de omitir suas responsabilidades e jogá-las nas costas do povo. Concordo que hoje em dia "vivemos" ( a sociedade de uma forma geral) a história. Hoje, um dos grandes desafios é reverter isso. Fazer as pessoas enxergarem a importância de viver, participar e mudar a história. Qto aos seus comentários sobre o ENEM achei muito pertinentes, e em um momento oportuno ( à mesa de um bar), debateremos de forma apropriada! rs
    Obrigado e parabéns!
    Beijos

    Thity

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  4. acrescentando: "vivemos" ( a sociedade d euma forma geral) POUCO a história.

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