Quem é de lá conhece esta cena: a vizinhança achando o melhor lugar para as cadeiras na praia das calçadas, a vida alheia desfilando diante dos olhos das senhoras ávidas por novidades e as crianças desafiando os anjos da guarda dos limites do meio fio. Sempre deitado ao lado de alguém, apesar de quase invisível a todos, lá está bom e velho vira-lata, fiel amigo do homem e feroz inimigo das calotas. É nesse ambiente de pacato tititi que se trava a disputa mais espetacularmente simbólica da nossa identidade cotidiana.
Logo que escolhera dobrar a esquina e tomar aquela rua qualquer ali mesmo, o motorista do carro mal sabia que fazia um mal: colocou frente a frente bigodes e pára-choques, dentes e rodas, espumando, assim, a baba raivosa de um xenófobo que recebe a aditivada visita de um imigrante. Aviltado, talvez, na sua sagrada privacidade canina, reage o valente pit-lata partindo para cima do sacrílego automóvel.
Todo o repertório de ataque é usado de uma só vez: corre-late-baba-rosna-uiva-mordeonada. E não adianta fugir, porque quanto mais o tentar o carro, mais rápido corre-late-baba-rosna-uiva-mordeonada o cão. Epopéia essa que só termina de duas maneiras: uma honrosa e a outra humilhante para o cão. Na primeira, como a rua acaba e o carro dobra a outra esquina e segue seu caminho, o cão pode voltar para o seu cantinho anônimo com a sua honra preservada. Na segunda, humilha-se profundamente o cão por não saber o que fazer quando o carro decide de súbito... parar!
Pois bem, eis a consagração do espetáculo: importa muito mais a aparência das coisas do que a sua essência. A falta de propósito de uma atitude ou de uma postura fica bem mais disfarçada quando o foco do problema passa a ser o outro. E única diferença entre a alienação do cachorro e a nossa canina postura diante da existência é fato de ser menos pior correr em vão por uma rua do subúrbio do que vagar sem propósito por toda a vida.
Márcio Hilário
(24-06-2010)