Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Realidade ou ficção, o claro direito ao perdão




“Sempre assisto à Rede Globo
Com uma arma na mão.
Se aparece o Francisco Cuoco,
Adeus televisão”
(“Psicopata”, Capital Inicial)

Mais um final de férias e tudo parece estar chegando ao fim... mas só parece, porque nada realmente começa com caráter oficial no Brasil antes do carnaval. Por isso mesmo é que as pessoas nem recolheram todas as coisas da geladeira da casa de praia, pois, como já cantaram Tom e Chico, “vou voltar, sei que ainda vou voltar”. Final de verdade só o da ficção: a novela − manifestação artística preferida do brasileiro, que se especializou em tomar conta da vida alheia – parece estar chegando ao fim... mas só parece, porque nenhuma novela realmente termina com caráter oficial no Brasil nem antes nem depois do carnaval.

Bisneta dos folhetins do século XIX, a novela passou pelas mídias impressas sem e com foto, vagueou nas ondas do rádio e finalmente desembarcou na televisão. Este meio de comunicação, que chegou ao Brasil nos anos 50, foi progressivamente ocupando um espaço absurdamente imenso na vida da população, principalmente na daquela que vive nos subúrbios, onde as biroscas com mesas de sinuca, carteado e maquininhas de caça-níquel são os únicos sinônimos de convivência e diversão. Claro que, por entre as quadras e lotes do lugar, também há espaço para os batuques, os incensos, os gritos, as palmas e os louvores na disputa pelo coração dos homens. Porém, tudo isso para quando começa a novela.

Um famoso crítico literário brasileiro já dizia que o romance serve para entreter, educar e refletir. Leia-se com mais cuidado: ser uma válvula de escape da realidade e um bom passatempo; formar nos valores morais das classes dominantes da sociedade; e fazer uma profunda reflexão existencial sobre as contradições da alma humana. O crítico ainda assinala que, embora a última função listada seja a mais profundamente importante para o nosso crescimento como indivíduos, é a última a ser praticada com mais empenho pelos escritores. A mim parece que a primeira é a mais inocente, mas, combinada com a perversidade da segunda, pode ser bem traiçoeira.

É justamente por isso que não vejo com nenhuma inocência a conversão de um personagem que cometeu toda a sorte de crimes e perversidades no decorrer da trama. Em poucos capítulos, o vilão tornou-se o queridinho do Brasil. Aliás, a palavra “vilão” − que designava os moradores das vilas, das periferias − já nos diz muito sobre a longa história da criminalização da pobreza. Enfim, todos afinal têm direito ao perdão... sim... desde que sejam brancos das elites urbanas do nosso país. Fossem eles os mesmos negros e mulatos – esta palavra deriva de “mula”, tá?! – que figuram nos mais diversos programas policiais da tevê deveriam ser todos condenados à morte antes mesmo do nascimento. É a mais contundente prova de que vida e arte realmente se confundem e que o direito ao perdão é uma questão de tom... claro!

Márcio Hilário
28-01-2013

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ver com os olhos livres


Se eu tô alegre
Eu ponho os óculos e vejo tudo bem
Mas se eu tô triste eu tiro os óculos
Eu não vejo ninguém
(Herbert Vianna)

Em algum momento já escrevi que textos datados me irritam profundamente, pois, afinal, datas são meras convenções. Não se precisa esperar o dia certo para começar ou terminar algo: seja manhã, tarde ou noite, o primeiro ou último dia da semana, do mês ou do ano, o tempo passa indiferente às convenções humanas. Os segundos, por exemplo, passariam mesmo se fossem chamados de terceiros. Até aí, tudo bem, esse raciocínio só provaria que sou uma pessoa consciente e avessa a ritos de passagem. Mentira! Nem eu nem meu texto podemos escapar às tais batidas na porta da frente. Ele não tem pra onde correr, porque, se o fizesse, deixaria de ser crônica; eu não tenho pra onde correr, porque em janeiro estou de férias e, sendo assim, inevitavelmente, minha rotina muda depois de pular sete ondinhas.

Quando se é menino e a saúde transborda pelos poros, espera-se pelas férias como quem deseja um período de anistia, sem leis, no qual as regras podem ser todas subvertidas – mais ou menos o que os adultos querem do carnaval. Longe de casa e dos pais, agregado a uma outra família, seja de parentes ou não, o pequeno pimpolho pode fazer tudo o que é proibido durante o ano. Volta depois carregado de hábitos estranhos, alergias, doenças respiratórias e anticorpos. Feliz, diga-se de passagem! Quando se é adulto e não se tem possibilidade de viajar atrás de anticorpos nacionais e importados, o sujeito de férias procura as doenças na própria carcaça. Como? Marcando exames!!!

Foi numa dessas que na semana passada estive em um punhado de consultórios médicos com a esperança de que me dissessem que, apesar de uma vida desregrada e irresponsável, teria direito a mais algumas dezenas de “continue” para ir tocando em frente. Coração? Ok! Ossos? Ok! Respiração? Cof, cof, Ok! Fígado? Deixa pro ano que vem! Enfim, tudo dentro dos meus conformes! Faltava apenas dar um confere na visão e mandar fazer os novos óculos. Foi, então, na última consulta que me aconteceu o inesperado: contrariando a todas as minhas expectativas, simplesmente e sem pedir licença, a Oftalmologista disse assim, na lata: “Você não precisa mais usar óculos”. (Pausa reflexiva...)

Como assim? Pasmei. Que golpe! Não é possível que, depois de quase vinte anos forjando essa cara de pseudointelectual, alguém tenha coragem de olhar para a minha cara – agora só com dois olhos – e dizer com toda a naturalidade que acabou, que eu tenho de me contentar só com os dois que Deus me deu e pronto! Então agora estou condenado a não poder dar mais desculpas, a não poder mais fingir que não vi, passar direto, pular uma linha, comer uma sílaba, errar uma conta, digitar o número errado...??? Meu Deus!!! Ver com os olhos livres, como queria Oswald de Andrade, é, enfim, uma grande prisão. Estou condenado a enxergar tudo!!! E o pior é que em 2014 teremos eleições. Medo!!!

Márcio Hilário

14-01-2014