Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A mística do Colégio Pedro II



Os textos já escritos parmenecem atuais quando insistem em traduzir os sentimentos verdadeiros de alguém. Assim eu me sinto em relação ao que escrevi sobre e para o Colégio Pedro II. Parabéns, pelos 173 anos de vida!!!



Para uns, o Colégio Pedro II é uma instituição de ensino respeitável e que, por apresentar uma equipe de profissionais de excelência, corresponde a uma grande oportunidade de ascensão profissional. Para outros, é um emprego público, que lhes garante estabilidade e segurança, diante das oscilações de uma economia de mercado, que gera, a todo momento, desemprego. Para outros ainda, é um trampolim para ambições maiores, talvez até no cenário político brasileiro.


Mas existe uma relação, envolta de uma certa mística, que se manifesta nos mais diferentes espaços, por meio dos mais diversos personagens. Seja no restaurante, na pizzaria, na fila do cinema, nos pontos de ônibus, nos estádios, nas festas, em todo lugar, se alguém por ventura puxar os primeiros versos da “Tabuada”, pessoas de todas as idades entoarão juntas um mesmo canto: “zum zum zum pararatibum, Pedro II”.


Na tradicional “Feijoada dos ex-alunos”, todas as gerações se encontram num abraço atemporal, no qual, diferentemente do que ocorre na sociedade, os mais velhos são os mais respeitados, porque têm mais histórias para contar. O avô mostra ao neto onde eram as salas do antigo Internato e não se cansa de relatar as suas “travessuras” para aquela cabecinha sonhadora, que já passa a olhar para os nossos símbolos com outros olhos.


E o que dizer das pessoas que nos olham com outros olhos quando sabem que somos do Pedro II? Quantas vezes, não nos pararam – depois de reconhecer em nós algum símbolo característico (adesivo, camisa, uniforme) –, querendo alguma notícia do “seu” colégio? E a pergunta é sempre a mesma: “Como vai o nosso colégio, continua o mesmo?”. Claro que o que desejam saber é se nós estamos conseguindo passar para as novas gerações aquilo que eles aprenderam e que está para além das matérias e muito além das salas de aula: a nossa mística.


Quando escrevi, há alguns anos, o poema “Tive o mundo em meu peito”, estava me referindo ao nosso emblema, que vai a cada ano mudando os números, que depois se convertem em estrelas. O que faltou dizer ali, é que a etapa final da metamorfose é que o nosso emblema, depois das três estrelas, fica gravado para sempre no nosso coração. O que é invisível para os outros, salta os olhos para nós. Porque só os nossos olhos vêem a nossa mística. Os outros não. Os outros são cegos a isso.

Márcio Hilário

26/10/2009

domingo, 14 de novembro de 2010

Peixe pequeno: calado já tá errado!

A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.

(Pe. Antônio Vieira. “Sermão de Sto. Antônio aos peixes".)


Nunca soube o nome dela, nem seu rosto foi tão vago como agora, mas a cena é mais inesquecível do que antes fora em mim.


Estávamos na Universidade de São Paulo (USP) para o Encontro Regional dos Estudantes de Letras (EREL). Pois é, cheios de siglas, códigos e bairrismos: disputando entre nós e com os outros quem estudava na melhor instituição, quem morava no melhor lugar, quem conseguia ser mais idiota.


A praxe desses eventos é que nos alojemos nas próprias salas de aula, em colchonetes e barracas, de acordo com o potencial financeiro de cada um. A comissão organizadora consegue uns quartos para si e quem tem grana tira onde de turista. Ou seja, é um microcosmos da nossa realidade social.


Só que nós havíamos sido alojados fora da USP, em um colégio que nem chuveiro tinha, e andávamos muitíssimo para estar nos locais onde aconteciam as atividades. E foi justamente depois de um dia inteiro de longas caminhadas que voltamos ao colégio para mudarmos de roupa e regressarmos ao campus. Era lá que estava ela, invisível e silenciosa, sentada à porta de uma das salas.


Passado um longo tempo, aquele imobilismo atiçou a curiosidade investigativa de alguém: a porta da sala foi trancada, deixando lá dentro as roupas e os objetos pessoais daquela jovem silenciosa. Mobilização. Cadê a chave? Quem trancou? Sacanagem. Nada. Solidariedade. Quer uma roupa emprestada? Usa a minha toalha e toma um banho? Não, obrigada! Dignidade ferida. Eram as suas coisas, puxa vida! Vai tomar um banho sim. Vamos lá. Levanta a cabeça. Vamos para a festa. Esboço de alegria em tão triste rosto.


Quem diria, aquela menina da periferia de São Paulo, da Cohab, com aquele povo do novelístico Rio de Janeiro, que lhe estendeu a mão e foi tão solidário com ela. Que legal. Parecia tão ali, tão acolhida, tão afagada, tão cercada de amigos, parecia tão gente!


Quando finalmente todos chegaram à tal festa na USP, cada novo amigo seguiu seu caminho, tomou seu rumo e sumiu. Mas certamente lavaram para cada canto do evento a história que provava a sua grandeza pessoal, na riqueza de seu gesto. Alguns deveriam até apontar para a Cinderela como uma prova viva do seu relato. E lá estava ela, silenciosa e sem sapatinhos de cristal, mas feliz, sabe-se lá por que.


No entanto, antes da meia noite, as jovens patricinhas cariocas que haviam protegido suas coisas, mas ignorado às da menina naquela sala, apareceram indignadas, com dedo em riste e cuspindo marimbondos. Cientes de que naquele conto de fadas lhes caberia o injusto papel de bruxas, trataram logo de desfazer o encanto da Gata Borralheira da Cohab: aquilo era uma palhaçada, não precisava fazer aquele teatrinho todo, ela tinha que tomar vergonha na cara.


E assim acabou mais uma história da Cinderela da periferia. Lá estava ela, naquele ambiente inóspito, anônima, sangrando em sua dignidade, transbordando em lágrimas... e, acima de tudo, incapaz de esboçar nem sequer uma mínima reação, nem mesmo um mísero grito de revolta ou de dor. Errada, apesar do mais completo silêncio.


Márcio Hilário.

14-11-2010

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Em terra de cegos, quem não é cego cega


“70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram; sem saber por que nem o que. Votam como vão à festa da Penha, - por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.”

(Machado de Assis)



Na crônica de 15 de agosto de 1876 (isso mesmo, lá no século XIX!!!), o já grande Machadinho, olhando para os números do recenseamento do império, ficava atônito com o obsceno índice de analfabetismo: apenas 30 % da população brasileira tinha acesso às informações escritas. A respeito do que não se sabe, não se reflete. Sem reflexão, não tem discussão, questionamento, proposição. Com isso, nada de transformação.

Para nosso escritor oitocentista, não saber ler é estar impedido de ser cidadão, já que a exigência básica do exercício da cidadania – que implica direitos e deveres – é a participação. Dentro dessa lógica e na mesma crônica, ele afirma que um governante brasileiro do seu tempo, ao proclamar-se um representante do povo, deveria na verdade dizer em alto e bom som: venho aqui em nome dos 30% a quem, de fato, represento!

Segundo as atuais taxas de alfabetização, o Brasil inverteu aqueles números sinistros e já pode se gabar dos seus mais de 90% de alfabetizados. Apesar disso, o sono eterno do Bruxo do Cosme Velho está longe de estar tranqüilo. Mudaram os números, mas surgiram com eles novos tipos de analfabetos. Aliás, sobre esse tema, o senso comum adora hastear a sua bandeira mais preconceituosa: analfabeto é sempre o pobre que vive nas periferias e que tem baixa escolaridade.

O lema desse estandarte é bem simples: saber ler é pouco; não basta reconhecer as letras e lidar com composições textuais básicas, é preciso ter a capacidade de compreender e interpretar das unidades médias às mais complexas, como textos científicos e acadêmicos. Enfim, o vilão da democracia participativa agora é o analfabeto funcional.

Penso que, em termos de cidadania, esse raciocínio seja, além de preconceituoso, equivocado, discriminatório e segregador. Ele culpabiliza o pobre e isenta as elites de praticarem uma outra e pior modalidade: como diria Brecht, o analfabetismo político.

Se hoje no Brasil todos podem votar, inclusive os completamente analfabetos, o que justifica um número de abstenção de eleitores superior a 20% nas últimas eleições presidenciais? Em números absolutos, isso chega perto de 30 milhões de pessoas, o que equivale a três vezes a população de Portugal, ou ainda, quase a totalidade das populações de Uruguai, Paraguai, Bolívia e Equador juntas.

Não bastasse o alheamento expresso por essas ausências, o contexto fica ainda pior quando nos damos conta de que nem todos os votantes exerceram no voto uma participação consciente. Ou seja, esses eleitores foram às urnas e cumpriram seu dever cívico, mas, na verdade, não estavam nem aí para o contexto político. E esse contingente é incalculável, pois não tem registro nem figura nas estatísticas, visto que está oculto e protegido pelo véu inefável da auto-alienação. É, portanto, a mais plena das abstenções e, por conseguinte, o mais profundo analfabetismo político, porque não se manifesta através de uma negação de direitos ou por meio de uma simples ausência, mas se revela pelo mais completo abandono do processo político como um todo. Nele o eleitor escolhe um candidato com a mesma indiferença criteriosa de quem pega um salgadinho numa bandeja sortida de festa só para não fazer desfeita: morde um pedacinho, enrola o resto no guardanapo, põe no cantinho da mesa e esquece!

E por falar em festa: enquanto o domingão legal e os bares dos novos pólos gastronômicos da cidade ficam cada vez mais lotados de pessoas engajadas na futilidade dos programas televisivos, os grandes momentos históricos continuam vagando anonimamente pelas ruas da indiferença.

Márcio Hilário.

03-11-2010


PS: Alguém já se deu conta de que, no último domingo (31-10-2010), foi eleita a primeira mulher para a Presidência da República Federativa do Brasil?

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ignorância especializada ou preconceito enraizado?

“Falo para quem falo:

quem padece sono de morto

e precisa de um despertador

acre, como o sol sobre o olho”

(João Cabral de Melo Neto)


Existem pessoas que já leram muito, muito mesmo. Mas, apesar de todo esse letramento, ficaram cegas para os textos do mundo. Como um matemático que se importa mais com os números da lógica de seu raciocínio do que com o produto final da sua conta-bomba-aristobélica, muitos desses leitores se perderam pela abstração labiríntica dos signos. Ciclistas ergométricos, velocistas rolantes, estudantes dormentes, intelectuais inorgânicos: ignorâncias altamente especializadas, estudando o vago, aprofundando o nada; porta-vozes do sem sentido, do sem sentir, do sem, do o.


Porque há quem acredite que ao ser pensante cabe apenas ruminar idéias em isolamento monástico, silêncio expectante e alheamento compulsivo, descobri, desde cedo, com pensadores como Leonardo Boff, que um verdadeiro intelectual deve ter um pé na academia e outro nas ruas. Ler o grande livro da vida, ouvir a música do mundo, aprender com a língua do povo: “Os pobres são os nossos mestres e os miseráveis são os nossos verdadeiros doutores”, já dizia ele. E a partir disso praticar a verdadeira solidariedade, que está na dimensão fraternal da compaixão, na luta por justiça social e no posicionamento ao lado dos mais humildes e mais necessitados.


Assim como creio que uma fé sem obras é uma fé morta, entendo que uma intelectualidade sem práxis é um bacharelado em ignorância.


O que as elites não toleram nessa postura intelectual orgânica é o ecoar do discurso das massas, das vozes dos marginalizados, do grito dos oprimidos. E todos aqueles que comungarem da “luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez, lugar” serão imediatamente desqualificados, vitimados por este preconceito visceral das classes dominantes. É por isso que, para elas, é inconcebível que uma pessoal como eu, com nível superior, mestrado e quase doutorado, possa torcer pelo Flamengo (que é time de marginal!), tocar e compor samba (que é música de marginal!) e votar no PT (que é partido de marginal!).


Talvez seja porque, ao fazer a opção preferencial pelos pobres, tenha eu optado por estar ao lado de um povo que sempre foi visto e tratado como marginal.


Márcio Hilário

26-10-2010

Leonardo Boff doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Durante 22 anos, foi professor de Teologia Sistemática e Ecumênica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano. Professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior, além de professor-visitante nas universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha). É doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela Universidade de Lund (Suécia). Em 1993, prestou concurso e foi aprovado como professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 8 de Dezembro de 2001 foi agraciado com o prêmio nobel alternativo em Estocolmo (Right Livelihood Award). É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Ecologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

(fonte: http://www.leonardoboff.com/site/lboff.htm)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O bicho tá solto

O bicho tá solto


Isso não pode ser obra de Deus não! Parece a até coisa do dem... desconjuro!... é coisa do demo! Nunca pensei que existisse um bicho assim, mas o pior é que existe, home-rapaz!
Fede que nem gambá, é traiçoeiro tipo escorpião, sorrateiro igual a um camundongo e esguio como gato vira-lata. Muda mais do que um camaleão, arma um bote mais peçonhento que uma cascavel e gosta mais de chupar sangue que morcego. Pensando bem, ele é do tipo sangue-suga mesmo.
Se é vaidoso? Um pavão! Ambicioso? Não sossega enquanto não roubar o trono do leão! Tem mais apetite e mais presas que um tubarão, mas dispensa os peixões para devorar os peixinhos. Só tem medo de uma coisa: estrela. Dá pra acreditar?
E o pior é que um bicho medonho desses anda solto por aí! Dizem que o danado atende pelo vulgo de “tucano”.
Que Deus nos proteja!!!

Márcio Hilário

(19/10/10)

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O subúrbio de pleito aberto

Eleição no subúrbio e aquele bate papo em tudo quanto é canto. A turma da purrinha no boteco se divide: um apóia a situação, outro quer arrumar um pistolão, o terceiro saiu de lona, abre a mão! e o quarto não vai votar é em ninguém não.

Todo mundo ouviu dizer que esse tal de voto nulo é a melhor pedida. Há quem creia que justificar ausência é a melhor saída. Oh! quando o trunfo sai de cima, a mão do jogo é invertida. Lei Seca que nada, domingo é pagode, churrasco e batida.

Dona Maria ainda não tem candidato. Waldemar acredita em tudo que é boato. Seu João acha que o jogo tá no papo! E o Toninho vive reclamando do Vasco... que fiasco!

Graças a Deus, acabou esse bendito horário eleitoral! Essa é a coisa que mais se escuta da Pavuna até a Central. E o cara, olha só, beijando criança, pagando cachaça e abraçando geral! Muito cara de pau! Dona Graça, não vota em branco, senão vai pra esse animal! O nulo também, boçal! Só o tal do válido é que conta no somatório final.

Boca de urna não vale, nem botar a boca no trombone! Aê! Nessa maquininha tem cd da Alcione? Oh, Dona Ivone! Que isso, hein? Toda toda. Tamanquinho, shortinho, blusinha de silicone. E aí, vai votar no genérico ou vai votar no clone?

É sempre assim: tudo levado na brincadeira! Ninguém assume que está dando bobeira e o país segue em frente, ou seja, nessa mesma pasmaceira. Meu Deus, quanta besteira! Edinho, bota aí pra mim a saideira!

Márcio Hilário

30-09-2010

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A cigarra e a formiga



"A gente não quer só comida

a gente quer comida, diversão e arte".

(“Comida”, Arnaldo Antunes)


Quem não se lembra dessa fábula? Enquanto as formiguinhas pensavam no futuro e trabalhavam, estocando comida para o inverno, a cigarra vivia a tocar e a cantar... toda irresponsável e inconsequente!!! Resultado: quando o inverno chegou, as formigas estavam aquecidas e fartas, ao passo que a cigarra morria de frio e de fome. Moral da história: primeiro vem a obrigação, depois a diversão!


Mas, onde está a verdadeira moral por trás dessa história na infantil?


A supervalorização do mundo do trabalho e da ideologia burguesa é o grande fator moralizante da trama, já que, para essa lógica sistêmica, importa acumular bens no presente, para poder desfrutá-los no futuro (será?). Dentro dessa perspectiva, ao indivíduo só resta a adequação ou a morte. Além disso, a arte está diretamente associada ao entretenimento, à diversão, o que, para essa leitura conservadora, significa perda de tempo. Sendo assim, ela vira elemento secundário, fruto da irresponsabilidade de quem não pensa no futuro e "vaga pela vida sem destino" (ou seja, um "vagabundo"!!!).


O pior disso tudo é que essa visão estereotipada papel da arte na sociedade não é uma exclusividade das formiguinhas: ela vai do aluno que diz que isso não cai não reprova ou não cai no vestibular, aos tecnocratas que não vêem objetivo prático ou valor ($) para algo tão imaterial.


Arte não é mercadoria, mas uma forma singular de ver o mundo, criando outros mundos.



Márcio Hilário.

(31-08-2010)

SOBREVIVER



SOBREVIVER


Ao amigo Aleksander Henryk Laks,
sobrevivente de Auschwitz.


Palavra que, se dividida,

Transforma-se numa expressão:

Será duplamente entendida

Conforme a obtida visão.


É “sobre” a mais rica das partes

Que altera o valor do “viver”:

Sendo “acima posicionar-se”

Ou o dito “a respeito de”.


Cada qual desses sentidos

Representa uma mesma face:

Ambos definem o amigo

Aleksander Henryk Laks.


Venceu um destino inclemente,

Livrou-se das garras da morte,

Tornou-se um sobrevivente,

Um bravo, um guerreiro, um forte.


Nasceu pondo vida no nome,

Viveu a seguinte lição:

De viver não se perde a fome,

Porque nunca se vive em vão.

Márcio Hilário
(12/08/2010)

sábado, 31 de julho de 2010

Dias de luz em um mundo de sombras

“Faltou luz, mas era dia, o sol invadiu a sala

Fez da tevê um espelho, refletindo o que a gente esquecia”

(Marcelo Yuka, “O que sobrou do céu”)

Num país de iletrados, as palavras só se manifestam em sons. A literatura escrita sempre foi um privilégio das elites, enquanto o povo exprimia sua criatividade e seu modo de ver o mundo oralmente nos “causos” e no folclore, ambos marginalizados. As notícias veiculadas nem tinham tempo de chegar às prensas, já que circulavam de boca em boca imprecisas, mutáveis e paroquiais, graças a quem fazia “má língua”. Então, veio a cultura de massa amplificando os sons no rádio e veiculando finalmente as imagens na televisão. E o povo segue iletrado e feliz.

Essa leitura, embora aparentemente coerente e aceitável, manifesta duas visões preconceituosas: subestima a riqueza e a força da cultura popular e apresenta uma falsa blindagem da cultura letrada em relação à cultura de massa. Tanto os hábitos, costumes e crenças de um povo é capaz de sobreviver, apesar da massificação via satélite, quanto a criação, (re)produção, veiculação, vendagem e consumo de livros pode obedecer à dinâmica impositiva e efêmera do mercado.

O problema maior dessa questão é ainda outro e até anterior à discussão sobre a cultura de massa: é a cisão entre o povo e as letras. Desde o início da nossa colonização, o mundo letrado impôs sua ideologia “civilizada” ao saber legítimo vivenciado pela experiência do homem com a sua terra. Nesse sentido, as letras tentaram calar a cultura popular, quando em verdade deveriam ser instrumento para manifestar de maneira singular a sua beleza e o seu valor. Em seguida é que vêm os meios de comunicação de massa, que poderiam traduzir tudo isso com outras formas de linguagem, ao invés de tentar um novo silenciamento.

Tudo isso me faz lembrar Alfredo Dias Gomes, que conseguia promover tal encontro em sua obra: foi o homem que buscou diversas maneiras de denunciar a realidade quando tantos outros preferiram se calar; foi o escritor ateu que criou maravilhosos personagens repletos da verdadeira fé que nasce no coração do povo; foi o dramaturgo de peças e telenovelas que chegou à Academia Brasileira de Letras; e foi aquele que tentou, em todas as linguagens, lutar contra as injustiças e por um Brasil melhor.

“Que poderia minha geração ter feito para evitar o desastre? Empunhamos as melhores bandeiras, lutamos pelas causas mais justas e generosas, o homem (e particularmente o homem brasileiro) sempre esteve no centro de nossas preocupações, de todo o nosso fazer cultural e, no entanto..., tudo deu nisso que aí está. Foi nossa culpa? Quantas e quantas vezes já me fiz essa pergunta. Que fizemos de errado? Porque, afinal, temos hoje quase exatamente o oposto do país que queríamos para os nossos filhos. E, o que é pior, os nossos filhos nem sequer lutam, como nós lutamos, por algo melhor. Cresceram dentro do túnel e se adaptaram à falta de sol e de horizontes.(...)” (Dias Gomes, Jornal do Brasil, 04 de maio de 1977)

Márcio Hilário

(31/07/2010)

PS: Assistam ao filme "O Bem Amado". Guel Arraes é um dos poucos que tentam nadar contra a corrente na TV de hoje.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

O que você vai dizer para o seu filho?


Realmente não queria dar espaço para os assuntos que espetacularmente pipocam na mídia, para não legitimar sensacionalismos e discussões vazias. Entretanto, diante do mais recente caso de polícia envolvendo um famoso, surgiu uma questão interessante, trazida por uma aluna, a quem agradeço: “Na TV perguntaram assim: o que um pai diz a um filho quando ele vê que o seu herói agora é um criminoso que foi parar na cadeia?”.


Sede e inquietação. Água em goles de ainda mais inquietação. Embora tenha aprendido com os personagens daquela simpática vila mexicana que somente os tolos respondem a uma pergunta com outra pergunta, não tive escolha: “Já eu queria saber o seguinte: quando é que os pais vão dizer aos seus filhos que alguém que ganha salário-mínimo e ainda assim consegue cuidar de sua família sem perder o caráter e a dignidade é que é um verdadeiro herói?”.


Trocando uma interrogação por outra, imagino que inquietante tenha ficado a minha voz, que se abriu de vez para denunciar a lógica perversa da nossa esquizofrenia social. Consagramos valores, estabelecemos princípios, definimos a moral e flexibilizamos a ética, utilizando para tanto as cifras como parâmetros de regulamentação da existência. Importa o quanto se tem ou quanto se aparenta ter para gastar, entendendo, assim, que portas sempre se abrem e grades nunca se fecham.Vende-se a alma, compra-se o afeto, aluga-se o corpo, paga-se o prazer, liquida-se a vida.


Numa lógica como essa não há espaço para cultivar e cultuar o respeito, o cuidado, a solidariedade, a alteridade, o engajamento, a participação, a cidadania, a compaixão, a gentileza, a honestidade, a integridade, ou qualquer outro valor que ensine a não pensar apenas em si mesmo. E, diga-se de passagem, são esses os valores que o nosso povo mais humilde sempre carregou consigo. Até porque, quando se vive na míngua, aprende-se que somente de mãos dadas se consegue transformar o pouco de cada um no suficiente para todos.


Sede e inquietação que não cede. Afinal, o que importa realmente é saber o seguinte: o que você vai dizer para o seu filho?


Márcio Hilário

(08-07-2010)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Disputa entre cão e carro


Disputa entre cão e carro

Quem é de lá conhece esta cena: a vizinhança achando o melhor lugar para as cadeiras na praia das calçadas, a vida alheia desfilando diante dos olhos das senhoras ávidas por novidades e as crianças desafiando os anjos da guarda dos limites do meio fio. Sempre deitado ao lado de alguém, apesar de quase invisível a todos, lá está bom e velho vira-lata, fiel amigo do homem e feroz inimigo das calotas. É nesse ambiente de pacato tititi que se trava a disputa mais espetacularmente simbólica da nossa identidade cotidiana.


Logo que escolhera dobrar a esquina e tomar aquela rua qualquer ali mesmo, o motorista do carro mal sabia que fazia um mal: colocou frente a frente bigodes e pára-choques, dentes e rodas, espumando, assim, a baba raivosa de um xenófobo que recebe a aditivada visita de um imigrante. Aviltado, talvez, na sua sagrada privacidade canina, reage o valente pit-lata partindo para cima do sacrílego automóvel.


Todo o repertório de ataque é usado de uma só vez: corre-late-baba-rosna-uiva-mordeonada. E não adianta fugir, porque quanto mais o tentar o carro, mais rápido corre-late-baba-rosna-uiva-mordeonada o cão. Epopéia essa que só termina de duas maneiras: uma honrosa e a outra humilhante para o cão. Na primeira, como a rua acaba e o carro dobra a outra esquina e segue seu caminho, o cão pode voltar para o seu cantinho anônimo com a sua honra preservada. Na segunda, humilha-se profundamente o cão por não saber o que fazer quando o carro decide de súbito... parar!


Pois bem, eis a consagração do espetáculo: importa muito mais a aparência das coisas do que a sua essência. A falta de propósito de uma atitude ou de uma postura fica bem mais disfarçada quando o foco do problema passa a ser o outro. E única diferença entre a alienação do cachorro e a nossa canina postura diante da existência é fato de ser menos pior correr em vão por uma rua do subúrbio do que vagar sem propósito por toda a vida.


Márcio Hilário

(24-06-2010)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

E agora sem José... Saramago?

José Saramago

Gostaria, sinceramente, de ter as palavras mais bonitas, a forma mais literária e a linguagem mais poética para escrever uma justa homenagem a José Saramago. No entanto, as lágrimas me cegam. Choro não pela morte do escritor, que permanecerá vivo em cada página por ele escrita, mas sim pela perda de um referencial que aprendi a ver e ter ali tão concreto, tão tangível, tão encarnado... tão aqui. Ao seguir além, Saramago foi definitivamente ocupar um assento que já era seu, ao lado de todos os utopistas os quais, com palavras e ações, definiram meu caráter, minha luta, minha militância. No entanto, essa ausência do ser vivente, do homem de carne e osso que interpretava e questionava cada nova insanidade da nossa vida cotidiana, deixa em mim um grande vazio. Sou a criança que acorda no meio da noite e se descobre sozinha em casa.

Nas suas últimas críticas à efêmera forma de comunicação dos nossos dias, Saramago deu um sentido ainda mais maravilhoso para a minha vida. Se em algum momento, por algum ínfimo motivo, numa fração mínima de tempo, eu cogitei a possibilidade de que um dia eu poderia me arrepender de ter escolhido a área de Letras, ou mesmo se duvidei da importância ou da utilidade daquilo que estudo, certamente isso foi antes de vê-lo dizer o seguinte:

“Se o leitor, o leitor de livros, aquele que gosta de ler, não se limitar àquilo que se faz agora, se ele andar para trás, se ele começar do princípio, se ele pode ler os primitivos, e os grandes cronistas, e depois os grandes poetas, a língua passa a ser mais do que um mero instrumento de comunicação. Transforma-se numa, digamos, mina inesgotável de beleza e de valor.”

Obrigado, mestre.

Márcio Hilário

(18/06/2010)


quinta-feira, 27 de maio de 2010

Inteligência artificial

“coisa é o nome do homem”

(Arnaldo Antunes)


Esta foi a gota que faltava: banheiros, quartos, salas, cozinhas e edifícios inteiros agora são criados para serem inteligentes. E, levando-se em conta que a moda chegou para ficar, talvez essas coisas, apesar de inanimadas, sejam as únicas “criaturas” realmente lúcidas do planeta. Mais ainda: se as previsões estiverem certas, elas serão as sábias mentes do futuro. Assim, uma simples bancada com pias em um banheiro de shopping, por exemplo, pode ser o esboço de um encontro de intelectuais ou a reunião do conselho universitário de amanhã. Convém tratar as pias com respeito.


O discurso ecológico tomou conta dos mais variados espaços de informação, discussão e formação. Qualquer um que ouse levantar a voz para balbuciar um mínimo “porém” correrá o risco de ir para a fogueira, ainda que a sentença prejudica a camada de ozônio e aumente o efeito estufa. No entanto, valeria questionar se tal discurso de ecologicamente correto vem acompanhado de uma prática similar. Ou a práxis engajada foi para o chão como os muros do passado e o que vale mesmo é só o exercício de retórica?


Se um homem – sem dúvida inteligentíssimo! – teve de criar uma forma mecânica para evitar o desperdício de água provocado pelo mau hábito de milhões de outros seres humanos, é porque algo está errado. Mas o quê? Certamente, não é a torneira, já que ela continua trabalhando com o mesmo mecanismo de abrir e fechar. Logo, a raiz do problema está no homem e na sua falta de consciência e de cuidado para com o planeta.


O que o discurso aparentemente engajado esconde é uma nova forma de alienação. Não há libertação quando apenas um pensa para que todos os outros executem. Atualmente, vence a concorrência quem oferece o melhor serviço, ou seja, oferece a solução mais fácil. Todavia, não há aprendizado quando as respostas já estão prontas, há adestramento. Engajar-se é querer encontrar novas respostas.


A velha recomendação “feche bem a torneira, apague a luz e feche a porta” colocava os problemas, porque buscava criar responsabilidades. Agora... bem... torneiras, lâmpadas e portas já estão bem crescidinhas para se virarem sozinhas.

Márcio Hilário.

27/05/2010

domingo, 9 de maio de 2010

Realidade e texto sob censura

Hoje, revi o filme "Quem quer ser um milionário?" e lembrei-me de que a minha resenha sobre o filme não foi aceita pela site "Guia da Semana". Mas, como agora tenho meu próprio blogue, posso publicá-lo. E assistam ao filme: é o subúrbio na tela.


“Quem quer dinheiroooo?”

É... para quem anda se dizendo cansado de ver o cinema brasileiro transformar marginais em heróis e querer jogar toda a culpa nas costas dos “homens de bem”, aqui vai a má notícia: esse olhar não é uma exclusividade tupiniquim! É impossível assistir a “Quem quer ser um milionário?” sem identificar familiaridades nas trajetórias dos personagens Jamal e Salim com a dupla Dadinho e Bené, ou mesmo Acerola e Laranjinha. Será que já estamos exportando a “estética da miséria” ou finalmente a Academia norte-americana deixou de ser impassível à “estática miséria” de 2/3 do mundo? Curioso é que essa mesma Academia fechara os olhos antes para o nosso “Cidade de Deus”. Claro, “O senhor dos anéis” era muito mais interessante!

Bem, de qualquer forma, o filme é maravilhoso e certamente convidará o espectador a reflexões mais profundas em relação aos valores que regem o mundo em que vivemos. Sem querer contar a história, mas não podendo fugir ao comentário, escolhi como emblemática a seguinte cena: O menino Jamal está trancado em um banheiro de madeira ao ar livre, tentando defecar por um buraco que fica no chão e por onde se despejam as fezes numa poça a alguns metros abaixo. Pela fresta, ele vê a chegada do maior ídolo do cinema indiano ao seu bairro. Com a foto do astro nas mãos, Jamal tenta arrombar a porta, mas não consegue. Decide, então, sair pelo mesmo buraco das fezes, mergulhando na poça e ficando com o corpo completamente sujo. Vendo-se “livre”, o menino corre para pedir-lhe um autógrafo. Obviamente, a multidão abre caminho para aquele serzinho escatológico, que, enfim, consegue alcançar sua meta.

Eis a síntese, não só do filme, mas do que é o casamento miséria/alienação no mundo globalizado: os pobres estão literalmente afundados nas fezes e dando pulos e mais pulos de alegria por existirem seus ídolos midiáticos, além da esperança de que a sorte grande possa sair do fundo baú da felicidade, livrando-os da marginalidade.

Márcio Hilário

(05/03/09)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Espelho, espelho... meu?

Modelo: coisa ou pessoa que serve de imagem, forma ou padrão a ser imitado, ou como fonte de inspiração; exemplo dado por uma pessoa, uma coisa, que possui determinadas características em mais alto grau; representante típico de uma categoria.
(Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa)
Nos versos de "Sampa", Caetano Veloso nos releva o estranhamento de quem chega a uma nova cidade, que em nada reflete a sua identidade: "Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio do que não é espelho". E assim é: rejeitamos tudo aquilo que não nos é familiar ou o que não se identifica conosco. O novo é estranho.
Narciso encanta-se com sua própria beleza refletida no espelho. Sorte dele: era muito bonito e ainda tinha um espelho que funcionava, porque cumpria o seu papel de devolver à realidade aquilo que ela oferece. Azar o nosso: nem podemos saber se temos alguma beleza, já que nossos espelhos não nos refletem. E já que isso ocorre, somos nós quem temos de passar a refletir o que os nossos espelhos projetam em nós. Nessa lógica, deveria dizer Caetano que o espelho acha feio tudo o que não é Narciso.
Tristes somos nós: um povo mestiço que não consegue ver-se e reconhecer-se como tal. As grandes agências publicitárias e os meios de comunicação de massa ainda obedecem a mesma lógica da nossa colonização: índios são pitorescos, negros são mão-de-obra e brancos são o padrão. Folclore, feitiçaria, civilização. Mato, favela, mansão.
Se olharmos bem a fotografia, vemos um maravilhoso exemplo de ação afirmativa da identidade de um povo. Lada a lado com as "modelos" da civilização, o governo do Acre - merecedor da indiferança satíricas dos civilizados (?) do Sudeste - expõe para o seu povo a beleza que cada um traz em seu próprio rosto.
Deve ser bom poder ser o que se é.