A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.
(Pe. Antônio Vieira. “Sermão de Sto. Antônio aos peixes".)
Nunca soube o nome dela, nem seu rosto foi tão vago como agora, mas a cena é mais inesquecível do que antes fora em mim.
Estávamos na Universidade de São Paulo (USP) para o Encontro Regional dos Estudantes de Letras (EREL). Pois é, cheios de siglas, códigos e bairrismos: disputando entre nós e com os outros quem estudava na melhor instituição, quem morava no melhor lugar, quem conseguia ser mais idiota.
A praxe desses eventos é que nos alojemos nas próprias salas de aula, em colchonetes e barracas, de acordo com o potencial financeiro de cada um. A comissão organizadora consegue uns quartos para si e quem tem grana tira onde de turista. Ou seja, é um microcosmos da nossa realidade social.
Só que nós havíamos sido alojados fora da USP, em um colégio que nem chuveiro tinha, e andávamos muitíssimo para estar nos locais onde aconteciam as atividades. E foi justamente depois de um dia inteiro de longas caminhadas que voltamos ao colégio para mudarmos de roupa e regressarmos ao campus. Era lá que estava ela, invisível e silenciosa, sentada à porta de uma das salas.
Passado um longo tempo, aquele imobilismo atiçou a curiosidade investigativa de alguém: a porta da sala foi trancada, deixando lá dentro as roupas e os objetos pessoais daquela jovem silenciosa. Mobilização. Cadê a chave? Quem trancou? Sacanagem. Nada. Solidariedade. Quer uma roupa emprestada? Usa a minha toalha e toma um banho? Não, obrigada! Dignidade ferida. Eram as suas coisas, puxa vida! Vai tomar um banho sim. Vamos lá. Levanta a cabeça. Vamos para a festa. Esboço de alegria em tão triste rosto.
Quem diria, aquela menina da periferia de São Paulo, da Cohab, com aquele povo do novelístico Rio de Janeiro, que lhe estendeu a mão e foi tão solidário com ela. Que legal. Parecia tão ali, tão acolhida, tão afagada, tão cercada de amigos, parecia tão gente!
Quando finalmente todos chegaram à tal festa na USP, cada novo amigo seguiu seu caminho, tomou seu rumo e sumiu. Mas certamente lavaram para cada canto do evento a história que provava a sua grandeza pessoal, na riqueza de seu gesto. Alguns deveriam até apontar para a Cinderela como uma prova viva do seu relato. E lá estava ela, silenciosa e sem sapatinhos de cristal, mas feliz, sabe-se lá por que.
No entanto, antes da meia noite, as jovens patricinhas cariocas que haviam protegido suas coisas, mas ignorado às da menina naquela sala, apareceram indignadas, com dedo em riste e cuspindo marimbondos. Cientes de que naquele conto de fadas lhes caberia o injusto papel de bruxas, trataram logo de desfazer o encanto da Gata Borralheira da Cohab: aquilo era uma palhaçada, não precisava fazer aquele teatrinho todo, ela tinha que tomar vergonha na cara.
E assim acabou mais uma história da Cinderela da periferia. Lá estava ela, naquele ambiente inóspito, anônima, sangrando em sua dignidade, transbordando em lágrimas... e, acima de tudo, incapaz de esboçar nem sequer uma mínima reação, nem mesmo um mísero grito de revolta ou de dor. Errada, apesar do mais completo silêncio.
Márcio Hilário.
14-11-2010