“Faltou luz, mas era dia, o sol invadiu a sala
Fez da tevê um espelho, refletindo o que a gente esquecia”
(Marcelo Yuka, “O que sobrou do céu”)
Num país de iletrados, as palavras só se manifestam em sons. A literatura escrita sempre foi um privilégio das elites, enquanto o povo exprimia sua criatividade e seu modo de ver o mundo oralmente nos “causos” e no folclore, ambos marginalizados. As notícias veiculadas nem tinham tempo de chegar às prensas, já que circulavam de boca em boca imprecisas, mutáveis e paroquiais, graças a quem fazia “má língua”. Então, veio a cultura de massa amplificando os sons no rádio e veiculando finalmente as imagens na televisão. E o povo segue iletrado e feliz.
Essa leitura, embora aparentemente coerente e aceitável, manifesta duas visões preconceituosas: subestima a riqueza e a força da cultura popular e apresenta uma falsa blindagem da cultura letrada em relação à cultura de massa. Tanto os hábitos, costumes e crenças de um povo é capaz de sobreviver, apesar da massificação via satélite, quanto a criação, (re)produção, veiculação, vendagem e consumo de livros pode obedecer à dinâmica impositiva e efêmera do mercado.
O problema maior dessa questão é ainda outro e até anterior à discussão sobre a cultura de massa: é a cisão entre o povo e as letras. Desde o início da nossa colonização, o mundo letrado impôs sua ideologia “civilizada” ao saber legítimo vivenciado pela experiência do homem com a sua terra. Nesse sentido, as letras tentaram calar a cultura popular, quando em verdade deveriam ser instrumento para manifestar de maneira singular a sua beleza e o seu valor. Em seguida é que vêm os meios de comunicação de massa, que poderiam traduzir tudo isso com outras formas de linguagem, ao invés de tentar um novo silenciamento.
Tudo isso me faz lembrar Alfredo Dias Gomes, que conseguia promover tal encontro em sua obra: foi o homem que buscou diversas maneiras de denunciar a realidade quando tantos outros preferiram se calar; foi o escritor ateu que criou maravilhosos personagens repletos da verdadeira fé que nasce no coração do povo; foi o dramaturgo de peças e telenovelas que chegou à Academia Brasileira de Letras; e foi aquele que tentou, em todas as linguagens, lutar contra as injustiças e por um Brasil melhor.
“Que poderia minha geração ter feito para evitar o desastre? Empunhamos as melhores bandeiras, lutamos pelas causas mais justas e generosas, o homem (e particularmente o homem brasileiro) sempre esteve no centro de nossas preocupações, de todo o nosso fazer cultural e, no entanto..., tudo deu nisso que aí está. Foi nossa culpa? Quantas e quantas vezes já me fiz essa pergunta. Que fizemos de errado? Porque, afinal, temos hoje quase exatamente o oposto do país que queríamos para os nossos filhos. E, o que é pior, os nossos filhos nem sequer lutam, como nós lutamos, por algo melhor. Cresceram dentro do túnel e se adaptaram à falta de sol e de horizontes.(...)” (Dias Gomes, Jornal do Brasil, 04 de maio de 1977)
Márcio Hilário
(31/07/2010)
PS: Assistam ao filme "O Bem Amado". Guel Arraes é um dos poucos que tentam nadar contra a corrente na TV de hoje.