quem padece sono de morto
e precisa de um despertador
acre, como o sol sobre o olho”
(João Cabral de Melo Neto)
Existem pessoas que já leram muito, muito mesmo. Mas, apesar de todo esse letramento, ficaram cegas para os textos do mundo. Como um matemático que se importa mais com os números da lógica de seu raciocínio do que com o produto final da sua conta-bomba-aristobélica, muitos desses leitores se perderam pela abstração labiríntica dos signos. Ciclistas ergométricos, velocistas rolantes, estudantes dormentes, intelectuais inorgânicos: ignorâncias altamente especializadas, estudando o vago, aprofundando o nada; porta-vozes do sem sentido, do sem sentir, do sem, do o.
Porque há quem acredite que ao ser pensante cabe apenas ruminar idéias em isolamento monástico, silêncio expectante e alheamento compulsivo, descobri, desde cedo, com pensadores como Leonardo Boff, que um verdadeiro intelectual deve ter um pé na academia e outro nas ruas. Ler o grande livro da vida, ouvir a música do mundo, aprender com a língua do povo: “Os pobres são os nossos mestres e os miseráveis são os nossos verdadeiros doutores”, já dizia ele. E a partir disso praticar a verdadeira solidariedade, que está na dimensão fraternal da compaixão, na luta por justiça social e no posicionamento ao lado dos mais humildes e mais necessitados.
Assim como creio que uma fé sem obras é uma fé morta, entendo que uma intelectualidade sem práxis é um bacharelado em ignorância.
O que as elites não toleram nessa postura intelectual orgânica é o ecoar do discurso das massas, das vozes dos marginalizados, do grito dos oprimidos. E todos aqueles que comungarem da “luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez, lugar” serão imediatamente desqualificados, vitimados por este preconceito visceral das classes dominantes. É por isso que, para elas, é inconcebível que uma pessoal como eu, com nível superior, mestrado e quase doutorado, possa torcer pelo Flamengo (que é time de marginal!), tocar e compor samba (que é música de marginal!) e votar no PT (que é partido de marginal!).
Talvez seja porque, ao fazer a opção preferencial pelos pobres, tenha eu optado por estar ao lado de um povo que sempre foi visto e tratado como marginal.
Márcio Hilário
26-10-2010
(fonte: http://www.leonardoboff.com/site/lboff.htm)