Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ignorância especializada ou preconceito enraizado?

“Falo para quem falo:

quem padece sono de morto

e precisa de um despertador

acre, como o sol sobre o olho”

(João Cabral de Melo Neto)


Existem pessoas que já leram muito, muito mesmo. Mas, apesar de todo esse letramento, ficaram cegas para os textos do mundo. Como um matemático que se importa mais com os números da lógica de seu raciocínio do que com o produto final da sua conta-bomba-aristobélica, muitos desses leitores se perderam pela abstração labiríntica dos signos. Ciclistas ergométricos, velocistas rolantes, estudantes dormentes, intelectuais inorgânicos: ignorâncias altamente especializadas, estudando o vago, aprofundando o nada; porta-vozes do sem sentido, do sem sentir, do sem, do o.


Porque há quem acredite que ao ser pensante cabe apenas ruminar idéias em isolamento monástico, silêncio expectante e alheamento compulsivo, descobri, desde cedo, com pensadores como Leonardo Boff, que um verdadeiro intelectual deve ter um pé na academia e outro nas ruas. Ler o grande livro da vida, ouvir a música do mundo, aprender com a língua do povo: “Os pobres são os nossos mestres e os miseráveis são os nossos verdadeiros doutores”, já dizia ele. E a partir disso praticar a verdadeira solidariedade, que está na dimensão fraternal da compaixão, na luta por justiça social e no posicionamento ao lado dos mais humildes e mais necessitados.


Assim como creio que uma fé sem obras é uma fé morta, entendo que uma intelectualidade sem práxis é um bacharelado em ignorância.


O que as elites não toleram nessa postura intelectual orgânica é o ecoar do discurso das massas, das vozes dos marginalizados, do grito dos oprimidos. E todos aqueles que comungarem da “luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez, lugar” serão imediatamente desqualificados, vitimados por este preconceito visceral das classes dominantes. É por isso que, para elas, é inconcebível que uma pessoal como eu, com nível superior, mestrado e quase doutorado, possa torcer pelo Flamengo (que é time de marginal!), tocar e compor samba (que é música de marginal!) e votar no PT (que é partido de marginal!).


Talvez seja porque, ao fazer a opção preferencial pelos pobres, tenha eu optado por estar ao lado de um povo que sempre foi visto e tratado como marginal.


Márcio Hilário

26-10-2010

Leonardo Boff doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Durante 22 anos, foi professor de Teologia Sistemática e Ecumênica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano. Professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior, além de professor-visitante nas universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha). É doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela Universidade de Lund (Suécia). Em 1993, prestou concurso e foi aprovado como professor de Ética, Filosofia da Religião e Ecologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 8 de Dezembro de 2001 foi agraciado com o prêmio nobel alternativo em Estocolmo (Right Livelihood Award). É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Ecologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

(fonte: http://www.leonardoboff.com/site/lboff.htm)

5 comentários:

  1. Concordo e endosso tudo o que está exposto acima.

    Só acrescento um ponto à sua argumentação: o organicismo do intelectual não deve, nunca, derivar em prepotência e/ou em discurso de autoridade.

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  2. Compadre,

    Parabéns pelos dois últimos textos!!! Para mim também estava engasgado... Aí Moleque, só a saideira do Edinho para organizar a revolução... rsrs... E como diria me Pai e que Deus o tenha: "A amizade continua!".

    Beijão.

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  3. O tempo passa, as modas também. Já houve quem pregasse o “fim das ideologias”, quem falasse em morte dos intelectuais. O senso comum os associa ao amor pelas idéias, a uma certa dificuldade em viver o cotidiano. O pensamento teórico associa o intelectual a disposição crítica, a capacidade de elaboração, a dedicação pública, ao engajamento político. E essa vocação é importante na medida em que é reconhecível publicamente e envolve, ao mesmo tempo, compromisso e risco, ousadia e vulnerabilidade. Parabéns, Mestre ! Bruno Marques.

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  4. Marginalização dos pobres, criminalização da pobreza, aumento do aparato repressivo do Estado... é um bloco imenso. Que seja, nossos ideais são maiores!

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  5. Amigo,
    antes de mais nada, muito obrigado pelas palavras de carinho e incentivo. Vindas de você, ecoam..

    Quanto ao seu último texto, tema tangenciado por nós no nosso último encontro e pano para manga para muitos outros chopps, a desigualdade social e intelectual é produto e interesse dessas elites. Nada "melhor" que marginalizar o popular para "legitimar o certo", que é sempre aquela visão conservadora... Ai de quem transite pelos dois mundos... é como se fosse uma antiga casta indiana. Só é possível descer a classe. Subir, só reencarnando...

    Parabéns pelo texto, pela pessoa que é e por sua postura, sempre exemplar e inspiradora.

    Forte abraço

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