Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Lixo extraordinário




Espanta-me a ignorância das pessoas a respeito do que seja arte e mais ainda o seu descaso em relação ao patrimônio histórico-cultural da nação. Carlos Drummond de Andrade que o diga. Talvez como numa forma de homenagem à mineirice do nosso célebre autor do poema “A bunda, que engraçada”, sua estátua foi colocada de costas para o mar de Copacabana, mas de frente para o calçadão. Ainda assim, o poeta não devia achar a menor graça quando suas vistas ficavam constantemente embaçadas pelo vandalismo daqueles que lhe arrancavam os óculos da cara. Que absurdo!

A estátua de Zumbi dos Palmares, na Av. Presidente Vargas, vira e mexe amanhece pichada de branco, quem sabe por algum fã desconsolado de Michael Jackson. Noel Rosa, em Vila Isabel, é regularmente surpreendido com mais alguns copos e garrafas na sua mesa: o Seu garçom já não aceita mais a pidureta! Em Niterói, Arariboia já faz cara de mau para não lhe roubarem a tanga e o colar – únicos pertences que lhe restaram. Em Duque de Caxias, o Pacificador, com medo dos crackudos do centro da cidade, tentou fugir pela Linha Vermelha, mas ficou preso com seu cavalo no engarrafamento da Rodovia Washington Luís.

Aliás, como todos sabem, Duque de Caxias é minha terra natal. E, neste natal, pude observar que o prefeito não re-re-eleito teve uma ideia maravilhosa para eternizar seu nome na história do município. Imagino que inspirado pelo artista plástico Vik Muniz, nosso belicoso governante solicitou à população que acumulasse o máximo de lixo possível em suas casas, ruas, esquinas, parques, praças, avenidas etc. Sua imagem seria maior do que o próprio Cristo Redentor e poderia ser vista até mesmo do teleférico do Alemão. Seria o luxo do lixo. Nem Joãozinho Trinta poderia ter pensado em tamanha apoteose.

No entanto, como eu disse antes, a população nada entende de arte e menos ainda de preservação do patrimônio. Ninguém soube tratar do lixo com dignidade e poucos foram capazes de resistir ao mau cheiro em nome da beleza artística. Somente as crianças em sua inocência souberam aproveitar bem o lixo do prefeito, brincando de esconde-esconde atrás dos monturos. Os adultos, demonstrando toda a sua ignorância estética, atearam fogo à matéria-prima da grande obra do mestre, o que praticamente inviabilizava a conclusão do projeto. E a imagem do prefeito, que fim vai levar? - perguntei eu. Ao que me responderam: - Esperamos que definitivamente morra nas cinzas e nunca mais renasça! É... pensei: Fazer o quê? Se é a vontade do povo, que assim seja!

Márcio Hilário
28-12-2-2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

"Panis et circenses": como é ser atleta no Brasil



Recuso-me a aceitar a máxima de que o brasileiro gosta de esporte, quando, na verdade, penso que o esporte preferido do brasileiro seja tomar conta da vida dos outros e, se possível, ejacular com o falo alheio. Herdeiro de uma tradição ibérica cristã e sebastianista, o brasileiro espera contemplativamente a vinda de um salvador, que o conduzirá a uma posição de glória que lhe permita zombarias xenófobas. Se o messias, no entanto, tropeçar em sua meta, será imediatamente negado por muito mais do que três vezes. No fundo, a única verdade bíblica disso tudo é a seguinte: quem quer ser atleta de alto nível no Brasil precisa mesmo saber fazer milagres.

Não é preciso exercitar muito os neurônios para reconhecer que não há no Brasil uma política desportiva séria intimamente ligada à educação. Ao contrário do que ocorre em outros países onde há verdadeiras escolas de formação no desporto nas quais um atleta vencedor destrona outro atleta de altíssimo nível, no Brasil precisamos de nomes: heróis que, apesar da falta de tudo, façam a diferença e tornem-se exceções. Basta observar que necessitamos esticar a permanência desse nome até que ele não consiga mais competir, visto que é difícil contar com outra exceção. O Brasil não tem uma escola desportiva. A prova disto é que muito de nossos campeões treinam fora do país. Sendo assim, eles são brasileiros só de nascimento, não de formação. Aliás, precisaram ir embora daqui para não se frustrarem de vez.

A relação entre a educação e a prática desportiva no Brasil é a seguinte: aulas de Educação Física são espaços de recreação (e ponto!). Os alunos do Ensino Fundamental só fazem atividades lúdicas, danças e coreografias para datas festivas, enquanto os alunos do Ensino Médio, que veem tais aulas como perda de tempo – muitas vezes pressionados pelo fantasma do vestibular –, preferem não fazer nada. Os professores, desmotivados, enfim, soltam a bola no meio da quadra para os rachões dos meninos, respeitando o período de regras das meninas que se sentam às margens das quadras. Enquanto isso, no outro lado da mesma escola, o aluno-atleta treina oito horas por dia e ainda é obrigado a fazer a mesma quantidade de matérias dos demais alunos. O resultado dessa equação é simples: com oito horas de treinamento, são oito horas a menos para estudar, logo, o desempenho piora na escola e a família pressiona ao jovem para que desista de seu sonho, que, para ela acaba sendo apenas “recreação”.

Enfim, mesmo diante de uma sociedade que entende a prática desportiva apenas como entretenimento, nossos atletas conseguem superar todas as barreiras da desistência e milagrosamente são capazes de colocarem-se no mesmo nível dos melhores do mundo e, mais milagrosamente ainda, até de vencê-los. Portanto, depois de uma disputa de medalhas na qual um de nossos atletas não tenha logrado êxito, que nenhum repórter faça mais a seguinte pergunta: “E aí, o que faltou?”. Ou correrá o risco de ter como resposta simples, incômoda e direta um sonoro “Tudo!”. E que venham os jogos olímpicos do Rio 2016.

Márcio Hilário
03-08-2012

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Os filhos do silêncio


Foto: Sebastião Salgado


Muito antes de aprendermos nossa língua pátria, já não falávamos em nossa não língua mátria. Nascidos dos ventres do silêncio, os quais nos carregaram mudos em nossas caladas gestações, nunca escutamos como fomos fecundados, porque também isso não nos foi dito. Calamo-nos quando das palmadas das parteiras, dos golpes do destino, das pancadas da vida e dos açoites do tempo. O não dizer é tudo com que nos comunicamos desde antes de nascermos para um mundo dominado pela palavra.

Nosso silêncio fez mais do que nos calar a boca, encurtou-nos os gestos, atrofiou-nos o movimento, ressecou-nos a boca, apagou-nos os olhos, matou-nos a alma. Na terra dos incansáveis oradores, fomos educados, enfim, para ter as orelhas baixas, os olhos caídos, o peito arqueado e a espinha dobrada. Obedecemos prontamente a todos os discursos proferidos por quem acima de nós se pôs. Quanto aos outros, só lhes podemos antecipar as pisadas, enfiando-nos por entre as solas de seus sapatos e o chão.

Em nossa boca de fome, se uma língua pendente há, é para lamber-lhes as botas. Nossa falta de dentes – nascida quem sabe da impossibilidade de sorrir – é que nos impede de morder as mãos que nos desalimentam. Não podemos reagir. Não devemos reagir. Não é certo! E ademais, para que reagir se o que poderíamos dizer nunca será ouvido? O que não se ouve não se entende. O que não se entende não se aplica. E o que não é aplicado não nos restitui a voz. E sem voz e sem vez, continuaremos assim esperando... o norte, a sorte, o corte, a morte. Tudo no mais completo e absoluto silêncio... baixinho... calado... sem incomodar ninguém.

Márcio Hilário.
11-07-2012