Uma típica cena suburbana desenhada por Jano.

domingo, 31 de março de 2013

Ad immortalitatem



Embora não seja muito do meu feitio usar este espaço de linhas suburbanas para dar eco às notícias que circulam por aí pela imprensa ou ainda que também esteja longe de meus horizontes a ideia de tornar-me um mero escravo do calendário, quero usar este último dia do mês de março para repactuar-me com o tempo.

O primeiro passo é lembrar que estamos na véspera do Dia da Mentira, que teve seu ápice no Brasil, especificamente no milésimo nongentésimo nonagésimo quarto ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo, quando militares e membros da sociedade civil decidiram colocar o país nos eixos desencadeando uma revolução. Esqueçamos as questões religiosas e a contagem histórica do tempo e foquemos só nas “nossas” mentiras: onde se lê revolução do dia trinta de março, leia-se golpe civil-militar de primeiro de abril. De resto, é certo que o país entrou nos eixos... desde que entendamos duas metonímias, trocando “país” por “alguns brasileiros” e “eixos” pela ideia de “máquinas de tortura e morte”.

Segundo os golpistas e a sociedade civil organizada que apoiou aquela ação e ainda hoje manifesta por ela certo saudosismo de quem deixou o trabalho incompleto (leia-se: gente viva), tudo era para ser apenas temporário. E foi. Só que os poucos meses, viraram vinte anos. Ah! Sejamos brandos, apenas duas décadas! Afinal, meses, anos, décadas, tudo é unidade de medida tempo, poxa! Sim. É essa não diferenciação entre o transitório e o permanente que faz com que, no Brasil, todos que entraram para ficar só um pouquinho acabem querendo ficar um pouquinho mais.

Foi nessa de querer ganhar um “continue” que o então presidente Tucano Henrique passou por cima da revolução dos bichos e jogou todas as fichas, moedas, notas e cargos para a aprovação da sua reeleição. Infelizmente (só para ele, claro!), aqui no Brasil não se pode ficar no poder ininterruptamente ad infinitum. Por isso, tento perdido prestígio e sendo praticamente esquecido pela ascensão de um certo tipo de molusco, só resta a Tucano Henrique tentar coroar sua infinita vaidade com outra expressão latina: ad immortalitatem. Agora, eu só me pergunto uma coisa: como pode ser eleito para a Academia Brasileira de Letras um homem que mandou que esquecêssemos tudo o que ele escreveu?

Espero que, desta vez, acontecendo ou não no dia primeiro de abril, este triste provável acontecimento histórico possa ser futuramente lembrado como apenas uma mentirinha de mau gosto.

Márcio Hilário.
31-03-2013

sexta-feira, 22 de março de 2013

Para quem não tem nada, a metade é o dobro



Ditados populares sempre me irritaram um pouco. A chamada sabença do povo nunca foi imune aos preconceitos que se enraizaram nas culturas. Muito pelo contrário, as massas sempre funcionam como vetores de uma ideologia que, invariavelmente, agiu contra elas próprias. Sendo assim, nem sempre é a melhor verdade a verdade que o povo diz. Quer dizer, o povo espelha perfeitamente aquilo que está ao seu redor, o que não significa que analise criticamente e bem todas as suas implicações. Falta-lhe talvez algum distanciamento para entender como aquilo se insere em um contexto maior.

Analisando carinhosamente o título desta nossa crônica, veremos um exemplo dessa lógica perversa dos ditos populares. É a dança das cadeiras: parou a música, as qualidades trocam de lugar até que no fim, só restará algo bom. Claro! Considerando uma perspectiva binária na qual o polo oposto é sempre o péssimo, o ruim naturalmente pode se converter em excelente. Afinal, qualquer coisa é melhor do que nada. Ou não é?

Somem-se a isso algumas outras máximas. Ninguém é perfeito. É errando que se aprende. Dos males o menor. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Em tempo de guerra urubu vira frango. Pra quem tem fome, guardanapo é bolo. Quem não tem cão caça com (ou como?) gato. É ou não é? Não! Não é! Gatinhos não latem! Comer um pacote de guardanapo dá indigestão! O urubu não é mascote do Atlético Mineiro! Para de show: dos males o menor? Tá bom, o crime não se torna mais leve quando o assassino usa uma arma de baixo calibre! Há erros que não têm conserto, meu caro! Não ser perfeito, tudo bem, mas não dá pra erra sempre, né?

Se é verdade que as coisas poderiam ser bem piores do que são, é igualmente verdadeiro que elas poderiam ser bem melhores também. Só que não é por isso, então, que devemos inverter a tabela e achar que tudo afinal é uma droga. As coisas simplesmente são o que são e devem ser vistas assim. Ao fim, ao cabo, dialeticamente precisamos ver os pontos positivos e negativos, reconhecer os acertos, mas denunciar os erros, buscando melhorar sempre. Não dá pra aceitar metade de nada como se fosse tudo. Metade é metade. É pouco, é pedaço. Como aprendi nas canções das comunidades eclesiais de base, “Deus criou o infinito para a vida ser sempre mais!”. 

Márcio Hilário
19-03-2013

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Espelho, espelho meu...


Nem deu muita bola para os anões, nem desejou que lhe chegasse um príncipe. Ficou foi intrigada com o espelho que falava e que, por conhecer todo mundo, sabia dizer quem era mais bonita que quem e tudo mais. Não adiantava perguntar nada ao espelhinho de armação laranja que ficava pendurado no mesmo preguinho das folhinhas do calendário. Tudo naquela casa permaneceria mudo diante da pergunta. Aliás, nem às pessoas ela se atreveria a perguntar nada. Mesmo que o fizesse, o que adiantaria? Não queria a verdade, mas a fábula.

Foi aí que lembrou do único objeto que tinha tela e voz em casa. Perguntar qualquer coisa para ele também não faria sentido, porque não obteria nenhuma resposta direta mesmo! Porém, diante daquela tela, pelo menos, podia fantasiar um mundo que não era o seu. Entrou nele, como Alice, querendo encontrar as maravilhas do país, onde tudo seria belo e feliz. Beleza e felicidade que pareciam bem justas, afinal. Por que lá fora não podia ser assim?

Ela desfilava por aqueles espaços... e via formas... e sentia perfumes... e conhecia gente... e comia e bebia do bom e do melhor. Sim! Ela se acostumaria com aquilo! Os mundos de dentro e de fora do seu espelho eram claramente opostos e obscuramente incompatíveis. Não queria nem pensar em voltar para aquela anterior realidade em branco e preto, pois o que queria eram as cores.

Porém, toda a sua viagem não durou mais do que um suspiro. Foi barrada. Da porta não poderia passar e não adiantaria mudar de canal, pois, para onde fosse, encontraria sempre o mesmo cadeado. O problema é que do lado de dentro da tela falante nem todas as cores são iguais, apesar de os iguais de lá serem quase todos da mesma cor.

Voltou para o seu mundo real, para o seu espelhinho mudo no preguinho e para tudo aquilo que não está incluído na tela falante, cuja voz ainda escuta, mesmo de longe, aceitando-a como a mais absoluta e incontestável verdade. Consumirá, portanto, todos os seus dias tentando ser outra pessoa e nunca tomará consciência da sua inebriante e inigualável beleza.

Moral da história: um povo que não se vê não se conhece nem reconhece seu valor.


Márcio Hilário
28-02-2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Quem não tem o que falar assovia!





Finalmente assisti ao novo filme de Quentin Tarantino e achei o máximo – que me perdoe o Spike Lee! Resolvi escrever sobre Django livre porque a voz da imbecilidade continua ecoando na minha mente: “É o pior filme dele!”, disse uma jovem com síndrome de crítica-cinematográfica-hiperbólico-metonímica, que, infelizmente, estava dentro da minha área de cobertura. Tá bom! Eu também não sou nenhum cinéfilo nem muito menos um especialista na obra tarantina. Aliás, tendo assistido apenas cinco dos nove filmes dirigidos por ele, creio que não possa fazer um comentário tão incisivo como o da minha antagonista de duas fileiras atrás. Diga-se de passagem, acho que ela ficaria indignada se soubesse que vi Pulp Ficcion, Jakie Brown, Kill Bill (volumes I e II), mas não Bastardos inglórios: ― Como assim??? E o Brad Pitt???

Ocorre que a provável pequeno-burguesa não deve ter passado, como eu, as tardes suburbanas de sábado assistindo ao faroeste da telinha, ou sessão bang-bang. Ela também não deve saber que inevitavelmente as obras dialogam entre si, desenvolvendo estilos e afirmando tendências, e que por trás de todas elas há um discurso ideológico. Se soubesse, teria percebido que o protagonista do filme de Tarantino não tinha os olhos verdes de John Wayne e que sua saga não se passava no Velho Oeste, onde sua nobre missão era dizimar as nações indígenas, docemente chamadas de selvagens, ou peles vermelhas. Por falar em pele, Django é negro, escravo e torna-se “o gatilho mais rápido do sul”, região dos EUA que pode ser facilmente classificada como uma das mais racistas do planeta. Aliás, o deboche que o filme faz com a Ku Klux Klan é simplesmente hilário (hein?!). Pois é, no filme de Tarantino, os rótulos se invertem e os antigos mocinhos do cinema são desmascarados como os grandes vilões da história. Ao final, Django cavalga com sua amada não para o por do sol como quem espera um novo amanhã, mas sim para a noite sombria que era o que ainda esperava pelos negros mesmo depois da abolição.

Pois bem, a pergunta que não quer calar é a seguinte: por que Django Livre seria o pior filme de Quentin Tarantino? Talvez falte um pouco mais de conhecimento da história  estadunidense e da sua cultura belicista, nascida de ícones como John Wayne e revivida diariamente com os atuais serial killers. Talvez, para quem leu que Leonardo Di Caprio estaria no elenco, ao ver que o negrão Jamie Foxx roubou a cena, deve ter pensado assim: ― Ai, nada a ver!!! Pois é aí que mora o dilema daquela estridente voz: ou faltou conhecimento ou sobrou preconceito. Ao fim, ao cabo, palmas para o Tarantino e para a jovem do cinema que fique a lição de um ditado popular bem suburbano: “Quem não tem o que falar assovia”!!! Ou assobia, tanto faz!

Márcio Hilário
22/02/13


sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Lixo extraordinário




Espanta-me a ignorância das pessoas a respeito do que seja arte e mais ainda o seu descaso em relação ao patrimônio histórico-cultural da nação. Carlos Drummond de Andrade que o diga. Talvez como numa forma de homenagem à mineirice do nosso célebre autor do poema “A bunda, que engraçada”, sua estátua foi colocada de costas para o mar de Copacabana, mas de frente para o calçadão. Ainda assim, o poeta não devia achar a menor graça quando suas vistas ficavam constantemente embaçadas pelo vandalismo daqueles que lhe arrancavam os óculos da cara. Que absurdo!

A estátua de Zumbi dos Palmares, na Av. Presidente Vargas, vira e mexe amanhece pichada de branco, quem sabe por algum fã desconsolado de Michael Jackson. Noel Rosa, em Vila Isabel, é regularmente surpreendido com mais alguns copos e garrafas na sua mesa: o Seu garçom já não aceita mais a pidureta! Em Niterói, Arariboia já faz cara de mau para não lhe roubarem a tanga e o colar – únicos pertences que lhe restaram. Em Duque de Caxias, o Pacificador, com medo dos crackudos do centro da cidade, tentou fugir pela Linha Vermelha, mas ficou preso com seu cavalo no engarrafamento da Rodovia Washington Luís.

Aliás, como todos sabem, Duque de Caxias é minha terra natal. E, neste natal, pude observar que o prefeito não re-re-eleito teve uma ideia maravilhosa para eternizar seu nome na história do município. Imagino que inspirado pelo artista plástico Vik Muniz, nosso belicoso governante solicitou à população que acumulasse o máximo de lixo possível em suas casas, ruas, esquinas, parques, praças, avenidas etc. Sua imagem seria maior do que o próprio Cristo Redentor e poderia ser vista até mesmo do teleférico do Alemão. Seria o luxo do lixo. Nem Joãozinho Trinta poderia ter pensado em tamanha apoteose.

No entanto, como eu disse antes, a população nada entende de arte e menos ainda de preservação do patrimônio. Ninguém soube tratar do lixo com dignidade e poucos foram capazes de resistir ao mau cheiro em nome da beleza artística. Somente as crianças em sua inocência souberam aproveitar bem o lixo do prefeito, brincando de esconde-esconde atrás dos monturos. Os adultos, demonstrando toda a sua ignorância estética, atearam fogo à matéria-prima da grande obra do mestre, o que praticamente inviabilizava a conclusão do projeto. E a imagem do prefeito, que fim vai levar? - perguntei eu. Ao que me responderam: - Esperamos que definitivamente morra nas cinzas e nunca mais renasça! É... pensei: Fazer o quê? Se é a vontade do povo, que assim seja!

Márcio Hilário
28-12-2-2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

"Panis et circenses": como é ser atleta no Brasil



Recuso-me a aceitar a máxima de que o brasileiro gosta de esporte, quando, na verdade, penso que o esporte preferido do brasileiro seja tomar conta da vida dos outros e, se possível, ejacular com o falo alheio. Herdeiro de uma tradição ibérica cristã e sebastianista, o brasileiro espera contemplativamente a vinda de um salvador, que o conduzirá a uma posição de glória que lhe permita zombarias xenófobas. Se o messias, no entanto, tropeçar em sua meta, será imediatamente negado por muito mais do que três vezes. No fundo, a única verdade bíblica disso tudo é a seguinte: quem quer ser atleta de alto nível no Brasil precisa mesmo saber fazer milagres.

Não é preciso exercitar muito os neurônios para reconhecer que não há no Brasil uma política desportiva séria intimamente ligada à educação. Ao contrário do que ocorre em outros países onde há verdadeiras escolas de formação no desporto nas quais um atleta vencedor destrona outro atleta de altíssimo nível, no Brasil precisamos de nomes: heróis que, apesar da falta de tudo, façam a diferença e tornem-se exceções. Basta observar que necessitamos esticar a permanência desse nome até que ele não consiga mais competir, visto que é difícil contar com outra exceção. O Brasil não tem uma escola desportiva. A prova disto é que muito de nossos campeões treinam fora do país. Sendo assim, eles são brasileiros só de nascimento, não de formação. Aliás, precisaram ir embora daqui para não se frustrarem de vez.

A relação entre a educação e a prática desportiva no Brasil é a seguinte: aulas de Educação Física são espaços de recreação (e ponto!). Os alunos do Ensino Fundamental só fazem atividades lúdicas, danças e coreografias para datas festivas, enquanto os alunos do Ensino Médio, que veem tais aulas como perda de tempo – muitas vezes pressionados pelo fantasma do vestibular –, preferem não fazer nada. Os professores, desmotivados, enfim, soltam a bola no meio da quadra para os rachões dos meninos, respeitando o período de regras das meninas que se sentam às margens das quadras. Enquanto isso, no outro lado da mesma escola, o aluno-atleta treina oito horas por dia e ainda é obrigado a fazer a mesma quantidade de matérias dos demais alunos. O resultado dessa equação é simples: com oito horas de treinamento, são oito horas a menos para estudar, logo, o desempenho piora na escola e a família pressiona ao jovem para que desista de seu sonho, que, para ela acaba sendo apenas “recreação”.

Enfim, mesmo diante de uma sociedade que entende a prática desportiva apenas como entretenimento, nossos atletas conseguem superar todas as barreiras da desistência e milagrosamente são capazes de colocarem-se no mesmo nível dos melhores do mundo e, mais milagrosamente ainda, até de vencê-los. Portanto, depois de uma disputa de medalhas na qual um de nossos atletas não tenha logrado êxito, que nenhum repórter faça mais a seguinte pergunta: “E aí, o que faltou?”. Ou correrá o risco de ter como resposta simples, incômoda e direta um sonoro “Tudo!”. E que venham os jogos olímpicos do Rio 2016.

Márcio Hilário
03-08-2012

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Os filhos do silêncio


Foto: Sebastião Salgado


Muito antes de aprendermos nossa língua pátria, já não falávamos em nossa não língua mátria. Nascidos dos ventres do silêncio, os quais nos carregaram mudos em nossas caladas gestações, nunca escutamos como fomos fecundados, porque também isso não nos foi dito. Calamo-nos quando das palmadas das parteiras, dos golpes do destino, das pancadas da vida e dos açoites do tempo. O não dizer é tudo com que nos comunicamos desde antes de nascermos para um mundo dominado pela palavra.

Nosso silêncio fez mais do que nos calar a boca, encurtou-nos os gestos, atrofiou-nos o movimento, ressecou-nos a boca, apagou-nos os olhos, matou-nos a alma. Na terra dos incansáveis oradores, fomos educados, enfim, para ter as orelhas baixas, os olhos caídos, o peito arqueado e a espinha dobrada. Obedecemos prontamente a todos os discursos proferidos por quem acima de nós se pôs. Quanto aos outros, só lhes podemos antecipar as pisadas, enfiando-nos por entre as solas de seus sapatos e o chão.

Em nossa boca de fome, se uma língua pendente há, é para lamber-lhes as botas. Nossa falta de dentes – nascida quem sabe da impossibilidade de sorrir – é que nos impede de morder as mãos que nos desalimentam. Não podemos reagir. Não devemos reagir. Não é certo! E ademais, para que reagir se o que poderíamos dizer nunca será ouvido? O que não se ouve não se entende. O que não se entende não se aplica. E o que não é aplicado não nos restitui a voz. E sem voz e sem vez, continuaremos assim esperando... o norte, a sorte, o corte, a morte. Tudo no mais completo e absoluto silêncio... baixinho... calado... sem incomodar ninguém.

Márcio Hilário.
11-07-2012